Thursday, January 25, 2007

São Gregório Magno: O músico magno da Igreja Católica!


Século V. O império romano está em ruínas. O caos administrativo, militar e político do império é sentido por toda sociedade européia. Os bárbaros invadem as fronteiras imperiais e as cidades se esvaziam, já que são vulneráveis aos saques, e a anarquia toma conta do continente. Os únicos resquícios do antigo império sobrevivem em Bizâncio e no legado da Igreja Católica. Os antigos poderes administrativos de Roma recaem, no ocidente, na figura dos bispados, que salvam a cidade antiga do marasmo. Por outro lado, a Igreja, na expectativa dos novos habitantes dos territórios imperiais, vê na figura dos bárbaros, a conquista de novas almas para a Cristandade.


O pragmatismo da Igreja é sentido em todo o caos: famílias romanas ligadas à instituição começam a forjar uma nova realidade social, a partir do caos. Todavia, a audácia da Igreja Romana seria recriar todo um império dentro dos ideais da sociedade cristã total. Eis que surgem os novos evangelistas, monges pregadores, vindos da Itália e até da Irlanda recém-convertida, que mostram as Boas Novas do Evangelho aos bárbaros e os convertem ao cristianismo. São construídos vários mosteiros na Europa, como sinônimo de resguardo cultural e religioso.

A idéia do monasticismo europeu não é moderna. Ela veio do Oriente, em particular, do Egito, e em algumas outras regiões da Palestina e da Grécia. Há fortes raízes judaicas na contemplação monástica, na figura dos essênios, seita do judaísmo isolada nos grotões das montanhas de Israel, no século I, A.D. No Egito cristianizado, na cidade de Alexandria, são conhecidas as manifestações monásticas e penitenciais , por vezes severas e exageradas, de eremitas e ascetas que se isolavam no deserto, em meditação.

No século VI, um grande monge chamado Bento de Núrsia, conhecido posteriormente como São Bento, soube organizar a situação dos mosteiros e da vida monástica. Ele criou as primeiras regras monásticas da Igreja, evitando os excessos na manifestação da devoção religiosa, ao mesmo tempo em que conciliava uma disciplina nos estudos e nas orações. Ficou conhecida como Regula Benedicti e foi adotada por uma boa parte dos monges medievais. De fato, as regras de Bento acabaram por fundamentar a Ordem dos Beneditinos.

Mas os mosteiros não foram apenas centros de contemplação religiosa. Em específico, as ordens monásticas preservaram uma boa parte da cultural clássica e medieval. Os beneditinos eram homens dedicados à cultura e a leitura e muitos eram obcecados por textos clássicos, relíquias do mundo antigo. Chamados de monges copistas, eles preservaram este legado, através de cópias de manuscritos, que eram reescritos de épocas e épocas, até chegarem às gerações posteriores. Dizem que estes homens escreviam sem parar, e passaram horas e mais horas, até completar o conteúdo das obras. Os copistas nutriam a crença de que quanto mais cópias fossem feitas, mais chances haviam das obras serem salvas. E essa lógica deu certo porque salvou muitas obras latinas e gregas do desaparecimento.

Isso já seria muito, se não fosse por outro detalhe: os mosteiros revolucionaram a economia e os costumes medievais. Os mosteiros foram a primeira empresa moderna, no amplo sentido da palavra, a ponto de renegar o escravismo e a servidão. Nos séculos VI a IX, as técnicas de produção agrícola, a capacidade administrativa e a aplicação de métodos contábeis das terras dos monges medievais eram superiores a qualquer empreitada agrícola feudal leiga. Ademais, a Igreja foi uma das pouquíssimas instituições medievais que usavam largamente o trabalho livre e assalariado em suas posses, desestimulando a escravidão. Muitas das terras da Igreja eram arrendadas aos camponeses, que poderiam produzir excedentes, ao mesmo tempo em que eles pagavam uma parte aos mosteiros. Ou mesmo os monges faziam o serviço voluntariamente, vivendo do usufruto de suas rendas, plantadas aos solos doados pela comunidade.

Ao contrário do mito alardeado sobre o poder da Igreja, grande parte das terras doadas para os monges eram insalubres e impróprias ao cultivo. No entanto, eles desenvolveram tecnologias de plantio de alimentos em pântanos e lugares íngremes, gerando grande produção de alimentos e enriquecendo os mosteiros. Uma parte desse excedente era consumido ou vendido, e outra parte era distribuído aos pobres.

A tradição da caridade da Igreja não era da Idade Média. Já existia desde a época do judaísmo da diáspora e foi incorporado às comunidades da Igreja Primitiva, até se tornarem parte da Igreja Católica e do mundo medieval. Na verdade, a Igreja foi a principal instituição de caridade em uma boa parte da história européia.

Se os bispados são meios eficientes de administração pública das cidades, que agora estão decadentes, a conversão dos pagãos ao cristianismo lhes dá uma legitimidade moral para o governo. Pequenos reinos nascem na Europa. Na mais completa tradição judaica adaptada ao cristianismo, os reis, cavaleiros e nobres são ungidos pela Igreja. Daí surge a nobreza cristã medieval e seus deveres políticos para com sua casta e seus direitos de conquista. O bispado romano, que perdeu seu status político, com a queda do Império no Ocidente e, sujeito às pressões do Império de Constantinopla, assim, teve sua possibilidade de reivindicar mais uma vez, autonomia e soberania espiritual.

Teoricamente, a Igreja Romana tinha hierarquização superior ao Império de Bizâncio, por herdar o legado da antiga capital imperial, embora as influências políticas do imperador neutralizassem essa influência. Vários papas gregos foram eleitos sob a indicação do imperador e a influência grega era sentida na Itália, apesar dos ressentimentos latinos. Se o poder espiritual da Igreja estava em Roma, sua força política estava em Bizâncio. O imperador, incorporando a tese bíblica de Melquisedec, ou do sacerdote-rei, conflitava com os poderes da Igreja e do papa. No entanto, as relações entre o imperador e o papa eram precaríssimas. Os papas latinos pagavam tributos a Bizâncio, desde o século V e então começaram a conspirar contra o poder do imperador. Durante o século VI, guerras bizantinas assolaram a Itália, e a independência da Igreja Romana foi salva pelos povos bárbaros conversos, em particular, os lombardos, que lutaram a favor do papa, contra o imperador Justiniano. Quase dois séculos depois, a Igreja Romana busca a proteção do reino franco, ao coroar Carlos Magno como imperador romano do ocidente, chocando os bizantinos, que se consideravam reais herdeiros da tradição romana. De fato, os cristãos de Bizâncio se autodenominavam Romioi, ou gregos com cidadania romana. E qualquer menção que os distinguissem dos romanos, soaria como ofensa.
Os católicos romanos exigiam a sujeição da Igreja e do Império Grego à autoridade do papa. Os conflitos entre Roma e Bizâncio e entre a Igreja Romana e sua filial grega, tanto em aspectos litúrgicos, teológicos e políticos, acabaram por causar a primeira ruptura da Cristandade na Europa, com o cisma de 1054, em que a Igreja Grega se desligou da Igreja Romana.

A Igreja Romana, de fato, conquistou sua supremacia política, com predomínio sobre a sociedade ocidental, quando coroou Carlos Magno, no Natal de 800. A idéia mesma de ungir um príncipe romano-germânico implicava a legitimidade do império, sob os auspícios e bênçãos de Roma. A tradição intelectual medieval acabou por desenvolver uma das teorias mais engenhosas da política: o fumdamento do poder espiritual e do poder temporal, que coexistiam e se equilibravam mutuamente, com preponderância do papado. O poder espiritual era o elemento orientador da política leiga e as ações dos príncipes só teriam legitimidade política, dentro da idéia de seguir a moralidade e o pensamento cristão. A Igreja fazia o equilíbrio de poderes nos papas e reis da Europa. A fé religiosa era um elemento comum de uma sociedade criada nos ideais do cristianismo. Isso ordenou, ainda com certa fragilidade e eficiência, o equilíbrio político do mundo europeu medieval, dividido entre vários feudos, reinos e principados que lutavam entre si.

Dentro deste contexto, é aclamado em Roma, como papa, no ano de 590, Gregório I, ou São Gregório Magno. Nascido em 540, era filho de uma velha família aristocrática senatorial romana, e, antes de ser Sumo Pontífice, fazia votos de monge beneditino. Gregório, um homem rico, legou toda a herança de sua família na construção de novos mosteiros e distribuiu uma parte de seus bens aos pobres. Ele patrocinou as primeiras ações missionárias na Inglaterra, sob a liderança de Agostinho da Cantuária, que converteu o povo inglês ao cristianismo e se tornou, posteriormente, o primeiro bispo da Cantuária. O papa era um homem culto e de letras, e uma de suas obras mais famosas é a biografia de seu mentor espiritual, São Bento de Núrsia. Por outro lado, o nome de Gregório ficou associado a uma das maiores contribuições de seu papado: a música!

O Canto Gregoriano é uma dos monumentos mais significativos da música ocidental. Foi compilado por ordem do papa, no ano 600 e é uma coletânea de músicas advindas da mais genuína tradição cristã. É o repertorio musical mais antigo que se há notícia no ocidente. Sua influência é tão abissal, tão profunda na música religiosa, que é sentida em milênios de música sacra cristã até os dias de hoje. Os cantos medievais, renascentistas e barrocos posteriores, as liturgias, os cânones, os responsórios, as antífonas, são estruturas ligadas aos esquemas musicais do Canto Gregoriano. Seu plano musical está intrinsecamente ligada aos rituais da missa católica.

Na verdade, os cantos gregorianos são o liame entre a música da Idade Antiga e o mundo medieval. Neles, há traços da liturgia judaica, grega e latina nos cantos e nas letras. Há ainda uma síntese de uma velha tradição oral da música cristã do mundo antigo, compilada em suas melodias homofônicas, com os recitativos judaicos dos salmos, em grego e latim. Concomitante a isso, o cantochão é uma sólida tradição encontrada nas sinagogas e mesmo na antiguidade clássica pagã latina, que foram incorporadas ao catolicismo.
O canto gregoriano acompanha os ritos da liturgia católica. Tal estruturação é encontrada em variadas épocas da música ocidental, desde Josquin de Prèz, até Mozart. É o legado do grande papa Gregório.
Eis aqui uma exemplificação do assunto, que extraio de um site, o que seria redundante repetir por minhas palavras:

"O Próprio é usado para temas de variados assuntos relacionados à igreja:

As peças principais do Próprio são:

o intróito
o aleluia

o canto do ofertório

o canto da comunhão

O intróito. O intróito acompanha a procissão de entrada do celebrante e de seus ministros, procurando ajudar aos fiéis a entrar no mistério celebrado, dando o tema do dia ou da festa.

O gradual. O gradual é o canto das leituras. É um tipo de salmo com estribilho. A princípio, a assembléia respondia com uma fórmula singela ao canto do solista que cantava os versículos sucessivos do salmo, mas durante os séculos V e VI, ao enriquecer a ornamentação, o texto se abreviou.

O aleluia. "Louvai ao Senhor", é a tradução literal desta palavra hebraica. Na missa se cantava originalmente só no dia de Páscoa; e durante o Tempo de Páscoa. Logo se começou a cantar também nos domingos, celebrações semanais do mistério da Ressurreição. Finalmente, se estendeu o uso até aos dias de semana, fora o da quaresma.

O ofertório. Não se trata de um canto "funcional" senão de um acompanhamento das cerimônias, um tipo de oferenda musical suntuosa.

A comunhão. A função deste canto é acompanhar a procissão dos que vão comungar. O tema do canto da comunhão está quase sempre relacionado com o sacramento que se distribui nesse momento. Trata de sintetizar a liturgia da Palavra e a liturgia Eucarística.

Ao lado dos cantos do Próprio com textos que variam segundo as circunstâncias, a celebração da Missa comporta cantos com um texto fixo, independentemente do dia ou da festa.

O Kyrie. Kyrie eleison (Senhor, tende piedade) é uma fórmula grega com o qual os fiéis clamam a seu Senhor implorando sua misericórdia. Este canto, hoje em dia entoado no começo da Missa como rito penitencial, prepara os fiéis para a celebração do mistério eucarístico.

O Glória. Hino de origem oriental, o Glória remonta ao século II. Na liturgia romana, foi no início o canto de entrada da Missa de Natal, posto que convém perfeitamente pela inspiração original da base do texto. Progressivamente foi utilizado nas grandes festas do ano e nos domingos.

O Sanctus. No início da súplica eucarística, o canto do Sanctus introduz ao grande recitativo do Prefacio. Chama-se "o hino dos Serafins" que viu no templo de Jerusalém o profeta Isaías. Convida a Igreja da terra a unir-se a liturgia do céu.

O Agnus Dei. É o canto que acompanha a fração do Pão que acaba de ser consagrado, cuja fração acontece alguns momentos antes da distribuição da comunhão aos fiéis. Assim os assistentes se aproveitam do momento que há entre a consagração e a comunhão "para saudar com homenagem e súplica humilde a Ele que se fez presente para nós sob a aparência do pão".
O OFICIO DIVINO

Esta grande súplica cotidiana da Igreja consagra o conjunto do tempo humano para o louvor divino. Sete vezes ao dia e uma vez durante a noite, a comunidade cristã se une para celebrar esta liturgia que no fundo está constituída essencialmente pelo canto dos salmos.

As antífonas. O canto do salmo está quase sempre envolto em uma peça breve chamado "antífona". Que, todavia se apresenta por seu valor próprio, introduz e conclui o canto.

Os responsórios. Os responsórios são os cantos que respondem as leituras da Bíblia e dos padres durante o ofício da noite. É antes de tudo um canto de meditação, um comentário contemplativo do texto sagrado.

Os hinos. As peças mais populares do oficio são sem dúvida, os hinos. Sua importância na liturgia ocidental foi introduzida pelo Concílio Vaticano II. O hino dá o tom e ajuda os fiéis a entrar no tempo litúrgico ou no mistério celebrado. Considerado como uma composição sensível e melodiosa."
(Canto Gregoriano - São Gregório Magno - Século VI A. D.)

Saturday, January 20, 2007

As mulheres da Idade Média: elas cantam e os homens vão a guerra. . .


Nos séculos XII e XIII, a França produziu uma grande leva de cavaleiros cruzados, prontos a combater os islâmicos na Terra Santa e nos domínios árabes da Espanha. Com as hostilidades turcas contra cristãos na Terra Santa e o pedido de ajuda do imperador de Constantinopla, Alexius Comnenus, ao papa Urbano II, no Concílio de Clermont, em 1096, ele conclamou muitos cavaleiros para que formassem a cruzada contra os árabes. Já havia ocorrido alguma outra “cruzada” de camponeses fanáticos, que foram facilmente repelidos pelos guerreiros islâmicos. No entanto, a força militar dos cavaleiros estava pronta para atacar os muçulmanos, divididos e fragmentados em guerras entre várias de suas facções étnicas e religiosas. De fato, o Reino Latino de Jerusalém, ou “Outremer” (Ultramar), foi criado por um duque, Godofredo de Boullon, que no ano de 1098, tomou a cidade de Jerusalém dos islâmicos. Um banho de sangue se seguiu à tomada da cidade, e quase toda a população islâmica foi chacinada pelos cruzados. Até os judeus não foram poupados: desesperados, estes se esconderam na sinagoga e os cruzados tocaram fogo, queimando-os vivos. Os cronistas medievais afirmaram que a matança foi tão grande, que na Via Apia, a passagem onde Cristo passou seu suplicio até o Calvário, o sangue chegava até os tornozelos dos cruzados. A ironia da história é que os islâmicos mortos pela invasão cruzada nem eram mais os turcos hostis, e sim os fatímidas, que pouco ou nada tinham a ver com a rivalidade turca dos cristãos e que tinham tomado recentemente Jerusalém dos turcos.

Anos depois do massacre, o Reino de Outremer começou a prosperar. Ele se expandiu e algumas outras cidades foram conquistadas. Foi daí que nasceram as grandes ordens militares medievais, os Templários e os Hospitalários, fundados para acompanhar os peregrinos, hospedá-los e protegê-los contra as investidas de bandidos e saqueadores, além dos inimigos islâmicos.

O comércio também prosperou, e os descendentes dos primeiros conquistadores acabaram por assimilar muito dos costumes árabes. Inclusive, houve muitos casamentos mistos entre francos, gregos e mesmo árabes.

As relações diplomáticas entre os cruzados e islâmicos variavam da guerra pura e simples, até a coexistência pacifica entre eles, embora precária. Isso chamava a atenção de vários nobres na França, que vítimas da fome, da miséria e belicosos ao extremo, queriam fazer fortunas em Outremer. Não isenta o fato de que muitos outros cavaleiros franceses foram para a Terra Santa em nome da fé, para defender a Cristandade dos islâmicos. Há casos e não são poucos, de homens que abandonaram suas terras e feudos, para lutar ao lado do Reino Latino de Jerusalém. O Reino de Jerusalém sentiu o primeiro golpe, quando a cidade de Jerusalém foi tomada por Saladino, em 1187. Em 1291, a cidade de Acre foi tomada e o Reino Latino de Jerusalém foi extinto.

No imaginário europeu e árabe, a palavra “franco” se confundia com o cruzado. Os francos eram conhecidos como um dos povos mais leais à Igreja Romana. Tradicionalmente, eles se tornaram o braço armado da Igreja, na figura de Carlos Magno, quando foi coroado no Natal do ano 800 A.D., como imperador dos romanos, fundando o Sacro Império. E muitos reinos fora da França foram criados por famílias francas, cuja bravura no campo de batalha era largamente conhecida. Eram conhecidos pela coragem indômita e pela ferocidade nos combates. Foram eles, em 732, que esmagaram os mouros, na batalha de Poitiers, na liderança de Carlos Martel.

Outro povo guerreiro da França foi o normando. Eram descendentes dos vikings, e vinham do norte da Europa, mais precisamente da Escandinávia e se situaram ao norte da França. Daí a palavra “normando”, o homem do norte. O primeiro registro dos vikings estabelecidos na França data de 911, quando um rei franco ofereceu um feudo, o ducado de Orleans, a um líder viking, Holf. Através de casamentos mistos com os francos, os normandos, os vikings, a partir do século XI, já haviam se convertido ao cristianismo e absorveram a língua franca. Eram também conhecidos pela bravura e pela brutalidade. Em 1066, Guilherme, Duque da Normandia, e chamado "o Conquistador", invade a Inglaterra e conquista o país, derrotando o exército saxão de Haroldo I, na batalha de Hastings, instituindo a monarquia franco-normanda dos Plantagenet. Quase cem anos depois, o filho mais dileto dessa dinastia marcou história no mundo: Ricardo Coração de Leão.

O Rei Ricardo, apesar de inglês, era a personificação mais perfeita da bravura franca, da luta cruzada. Embora tenha sido rei da Inglaterra, mais se ausentou do que governou o país, ocupado com sangrentas batalhas nos feudos da França. Na verdade, Ricardo Coração de Leão se considerava mais francês do que inglês. A sua língua comum era o francês do sul da França e dizem que mal falava o dialeto que gerou o inglês. Nem mesmo a corte inglesa falava o inglês.

Em 1191, acatando aos pedidos de uma terceira cruzada, foi para a Terra Santa e conteve o avanço do grande sultão Saladino. Ricardo Coração de Leão era tão temido pelos árabes, que no imaginário muçulmano palestino, as pessoas da Palestina islâmica tremiam de pavor ao pensar no nome de “Melech Ric, como ele era chamado em árabe. Dizem algumas crônicas, que até as mães árabes assombravam os meninos, com as histórias do rei vindo do norte. Em uma das batalhas mais espetaculares da Terceira Cruzada, Ricardo aportou numa galera em Jaffa, quase conquistada pelos árabes, e à frente de seu pequeno exército, num acesso de fúria, matou tanta gente, que os soldados de Saladino fugiram apavorados, incapazes de conter o cavaleiro. Saladino, homem de inclinações espirituais elevadas e o protótipo europeu do cavaleiro islâmico por excelência, ficou perplexo e admirado com as investidas do normando. Comenta-se que mandou presentes ao rei inglês, pelos atos de bravura.

Todavia, havia um misto de admiração e desprezo pelos francos. Os habitantes do sul da Itália, da Grécia, os árabes e mesmo os francos da Palestina, adaptados à realidade do oriente, viam os a nova leva de cavaleiros francos com desconfiança e desdém. Os cavaleiros europeus eram desprezados como pessoas rudes, fora da civilidade. Embora fossem ferozes, guerreiros, eram estigmatizados como culturalmente inferiores. Dizem que Ricardo, quando estava entre a Itália e o Chipre, antes de sua chegada a Palestina, em resposta ao desdém dos gregos, mandou criar uma pequena Fortaleza chamada “Mategriffon”, ou seja, “matador de gregos”. Se os gregos e italianos afirmavam que os ingleses e francos eram povos loiros com cabelo de manteiga rançosa, (e burros), os francos, e em particular, os ingleses normandos, chamavam os gregos de “pessoas extraídas de merda árabe”.

E onde ficam as mulheres da França? Com a ausência de tantos homens na França, ficou às mulheres, a responsabilidade de administrar os feudos. A mulher politicamente mais importante do século XII foi Eleanor de Aquitânia: esposa de dois reis, Luis VII, da França e, posteriormente, Henrique II, da Inglaterra, e rainha de dois reinos, Inglaterra e França. Ela era mãe do Ricardo Coração de Leão e com a herança da Aquitânia, tornou-se uma das mulheres mais poderosas da França. Eleanor foi grande patrocinadora das artes e da música, e sua filha, Marie de Champagne, foi difusora do movimento trovadoresco na França. Branca de Castela, bisneta de Eleanor e mãe de São Luis IX da França, era grande musicista e compositora. Outra mulher famosa por suas trovas é a Condessa Beatriz de Dia, que viveu no século XIII. São as “trobairitz”, as mulheres trovadoras.

Os dialetos comuns na França medieval eram dois: o "langue d’oil", que era o chamado o francês arcaico e que deu origem ao francês moderno, comum ao norte da França; e no sul da França, o “langue d’oc”. Langue d´oc, que por sua vez, quer dizer, o francês da Occitânia, ou Aquitânia. Alguns dizem que o provençal está próximo do francês langue d´oc. O mesmo provençal que influenciou as cantigas de amor portuguesas e espanholas. Grande parte das peças femininas fala das tramas do cotidiano das nobres; angústias amorosas do amado ausente, seja na Palestina, seja em outros campos de batalha, mostras de devoção religiosa marianista, ou mesmo o pano de fundo para a trama: a donzela à janela, costurando, lendo um livro.

As mulheres medievais francesas da nobreza não possuíam educação formal, mas tinham elevada cultura. Em parte, essa autonomia se deveu às heranças de suas linhagens e à ausência dos homens, reais proprietários dessas terras, que estavam nos campos de batalha, e deixaram seus bens a suas esposas. E por outro lado, as regras de etiqueta exigidas pelo status nobre, davam um suporte intelectual às damas. Elas tinham domínio de boas maneiras, música, falcoaria, equitação, xadrez, canto, dança e habilidades para ler e escrever. Em suma, incorporavam o papel restrito aos homens, exercendo altas habilidades culturais. E uma delas, era a música.

No entanto, a partir do século XIV, a autonomia das mulheres nobres começa a definhar. As cruzadas se transformaram num engodo militar, que nenhum rei ou cavaleiro se atreveria a carregar. Preferiam ficar em casa. Os nobres franceses reivindicam a lei sálica, para excluir as mulheres dos direitos de administração de feudos e reinos. Cabe lembrar que a lei sálica, excluindo as mulheres, excluía dinastias importantes ao reino da França e isso acabou causando também guerras. E a partir da Renascença, a mulher perde sua proeminência política, restrita, mais uma vez, aos homens.



As canções que são publicadas aqui fazem parte do repertório das mulheres trovadoras da França. A primeira música, “A chantar”, de Beatriz de Dia, tem um componente erótico, que é a exaltação dos prazeres do amor carnal. “Amous”, de Branca de Castela, é uma canção de devoção à Virgem Maria. Maroie de Dregnau de Lille é uma trovadora de origem desconhecida e provavelmente viveu no século XII. Sua canção é uma trova de amor. As duas peças “Estampies”, pertencem ao repertório de dança: estampie é um estilo de dança medieval muito comum na França, e encontrado em outras regiões da Europa. Seu tipo é, provavelmente, uma dança de sapateado. A sua originalidade consiste em ser um tipo de música instrumental da Idade Média, já que a maioria das peças medievais eram cantadas.

Muitas das obras aqui foram encontradas no Manuscrit Du Roy, no século XIII. A única que não se inclui na época é a Estampie do século XIV, que é uma música a parte.

(Trovadoras da França – Século XII – XIII)



1. A chantar m´er de so q´ieu no volria.(Beatriz de Dia)

2. Amous, u trop tart me sui pris.(Branca de Castela)

3. Mout m´abelist quant je voi revenir.(Maroie de Lille)

4. La Quinte Estampie Royal.(Anônimo).

5. Estampie. (século XIV).

Friday, January 19, 2007

VOX IBÉRICA IV: Sefarad e a música da nova diáspora!


“E ordenamos previamente neste édito que todos os judeus e judias de qualquer idade que residem em nossos domínios e territórios, que saiam com os seus filhos e filhas, seus servos e parentes, grandes ou pequenos, de qualquer idade, até o fim de julho deste ano, e que não ousem retornar a nossas terras, nem mesmo dar um passo nelas ou cruza-las de qualquer outra maneira. Qualquer judeu que não cumprir este édito e for achado em nosso reino ou domínios, ou que retornar ao reino de qualquer modo, será punido com a morte e com a confiscação de todos os seus pertences.
Ainda ordenamos previamente que nenhuma pessoa em nosso reino, de qualquer estado, ou nobreza, esconda ou mantenha ou defenda qualquer judeu ou judia, seja pública ou secretamente, do fim de julho em diante, em sua casa ou em qualquer lugar em nosso reino, sob pena de perda de seus pertences, vassalos, fortalezas e privilégios hereditários.”


Este trecho foi extraído do édito de expulsão dos judeus da Espanha, assinado pelos reis Fernando V de Aragão e Isabel de Castela, selando definitivamente séculos de presença judaica na Espanha. A expulsão dos judeus em território espanhol foi uma das maiores tragédias da história daquele país. Milhares deles abandonaram suas casas, vilas e cidades, e o êxodo foi um espetáculo tão assustador, que até os cronistas cristãos ficam chocados com a atitude dos reis católicos. Dizem alguns números, que cerca de duzentos mil judeus, ou 5% da população espanhola partiram da Espanha. Cidades inteiras ficaram desertas e o reino espanhol se viu privado de uma das melhores intelectualidades do país. Se os judeus experimentaram várias diásporas em sua historia, a partida de “Sefarad” (o termo assim usado pelos judeus, ao se referir à Espanha) é mais uma coleção de um povo desterrado e errante. Uma parte foi embora para Portugal, e o resto, para o norte da África e para as terras do Império Turco.

Os judeus eram um dos povos mais antigos da Península Ibérica. Habitantes são conhecidos desde o fim do Império Romano e com a invasão árabe na Espanha, em 711, muitos outros, vindos das terras do Norte da África, acompanharam os invasores, radicando-se na região. O crescimento das cidades cristãs e islâmicas prosperou junto com a história judaica no mundo árabe-hispânico. Na verdade, os judeus fizeram parte da Época de Ouro medieval espanhola. Encontram-se judeus nas cortes islâmicas dos Omíadas, tanto quanto na corte de sábios de Afonso X, El Sábio. Como engenhosos comerciantes e profissionais liberais, os judeus tinham invejável proeminência em assuntos de medicina, advocacia, filosofia, matemática, astronomia e literatura. São encontrados judeus nas administrações de reinos cristãos e islâmicos. São contabilistas, cobradores de impostos, juristas.

E são também literatos e filósofos. Samuel Ibn Nagrela, Salomão ibn Girol, Judá Halevi são poetas profanos. E a partir da Idade Média é que se conhecem os grandes tratados filosóficos do judaísmo: Maimônides, o grande pensador judeu, escreveu suas obras dentro do universo espanhol árabe. O “Guia dos Perplexos” é uma obra que associa do pensamento aristotélico à religião judaica. Nahmanides foi um rabino polemista, famoso por viver às turras com os cristãos, em debates teológicos sobre a validade do cristianismo e do judaísmo. Como um crítico do cristianismo, não era muito bem visto pelos cristãos, apesar de respeitado. O Zohar, obra mística ligada à tradição cabalista, foi escrita no século XIII, na Espanha, e divulgada por várias comunidades judaicas do mundo.

Os judeus estão intimamente ligados às navegações marítimas portuguesas e espanholas. Seus estudos sobre as estrelas e os astros são conhecidos desde o século XII. Técnicas de uso do astrolábio e de tecnologia náutica trazidas pelos árabes tiveram uma sólida ajuda dos judeus. Quando começaram a sentir as perseguições religiosas dos reinos espanhóis, muitos deles foram mostrar seus serviços ao reino português. O príncipe infante português Dom Henrique, o Navegador, criou a Escola de Sagres, com forte participação de matemáticos e astrônomos judeus. Abraham Zacuto escreveu uma obra chamada “Almanaque Perpétuo de todos os Movimentos Celestes”, cujas aplicações marítimas eram segredos do Estado português. Jehuda Crescas era cartógrafo da Escola de Sagres e Mestre João, astrônomo da viagem de Pedro Álvares Cabral, descobriu o Cruzeiro do Sul, em 1500. Afirma-se que o próprio Cristóvão Colombo fosse judeu, apesar de que essa tese nunca foi historicamente provada.

Entre as religiões e culturas da Península Ibérica, os judeus estavam no fogo cruzado entre cristãos e islâmicos. Dentro das intrigas políticas, religiosas, guerreiras e palacianas dos grandes povos da Espanha, a comunidade judaica escolhia aquilo que melhor convinha à sua autonomia política e religiosa. Isso gerava desconfiança e ressentimento contra os judeus, vistos como um povo de caráter dúbio e não muito confiável. No entanto, os judeus estavam profundamente ligados aos cristãos pelo sangue. Um exemplo clássico disso é a profunda miscigenação entre os judeus e a nobreza cristã espanhola. No século XV, a nobreza espanhola era conhecida por seus casamentos mistos com judeus; e, no auge do radicalismo anti-semita do recém criado reino espanhol, a partir de 1492, a monarquia criou as chamadas “leyes de limpieza de sangre”. Tais leis visavam expurgar a mistura racial entre judeus e cristãos, ou mesmo condenar ao ostracismo qualquer família de linhagem nobre com sangue judeu.

O estigma antijudaico que se criou na Espanha foi tão pesado, que a nobreza espanhola era vista com desconfiança. É conhecida algumas declarações de alguns bispos e nobres, sobre a exaltação do homem espanhol plebeu, “límpio de sangre”, sem mistura judaica, cristão velho, em contrapartida a muitas famílias nobres, “súcias” de sangue judaico.

Foi a partir do século XV que nasce o termo “marrano”, ou seja, porco, como sinonímia de judeus no reino espanhol. A palavra “marrano” se tornou tão estigmatizadora, que ela mesmo, historicamente, se confundiu com o próprio significado de judeu. Nos escritos do século XVI, “marrano” se confundia tanto como “porco”, quanto judeu. E mesmo no século XVII, quando muitos judeus portugueses foram morar na Holanda, refugiados da inquisição portuguesa, a palavra “português”, fora dos domínios de Portugal, acabou por se confundir com o baixo status judaizante.


Aliás, havia uma crença disseminada na Espanha, de ligação do protestantismo com o judaísmo. Felipe II da Espanha e muitos inquisidores viam na declaração de Lutero, uma apostasia judaica, assim como muitos reformadores religiosos eram suspeitos, aos olhos dos espanhóis, de judaísmo no sangue. E quando o Reino Espanhol adotou sua vanguarda de campeã do catolicismo europeu e da Contra-Reforma, qualquer estrangeiro de idéias um pouco diferentes das do reino poderia ser visto com um “judaizante”. Os espanhóis conseguiam ser mais rigorosos do que os próprios italianos de Roma.

A centralização monárquica e o radicalismo de unidade religiosa do reino acabaram por comprometer a autonomia religiosa e política dos judeus da Península. A idéia central do catolicismo espanhol era purificar a religião de elementos estranhos ao cristianismo, ou seja, as velhas práticas islâmicas e judaicas. Como a religião católica se atrelava intrinsecamente aos propósitos do reino, logo, a diversidade religiosa não seria tolerada. Os judeus eram vistos como corruptores da fé católica, que induziam os judeus conversos a voltarem à sua antiga religião. Inclusive, muitos padres e bispos eram suspeitos de tendência “judaizante”. A inquisição espanhola começa a atuar em 1481, com o famoso Tomás de Torquemada, crudelíssimo inquisidor geral, e ele mesmo, um descendente de judeus. Cerca de 13 mil conversos foram julgados pela inquisição espanhola, entre 1480 e 1492. Na verdade, os ressentimentos não visíveis entre as fés da Península acabaram por explodir num vendaval de intolerância do reino cristão contra a dissidência religiosa. As tendências mais radicais da religiosidade católica espanhola dominaram o cenário político. A ânsia de identidade acabou por se tornar uma ânsia de expurgo. E isto deu cabo à presença judaica na Espanha.

A política espanhola contra os judeus foi sentida em Portugal. O rei Dom Manuel ansiava por se casar com a filha dos Reis Católicos Isabel e Fernando. Todavia, os reis espanhóis exigiam, dentro de suas cláusuras, a purificação do reino, ou seja, a expulsão dos judeus de Portugal. Porém, Dom Manuel havia dado asilo a muitos judeus espanhóis do edito de expulsão de 1492 e uma comunidade judaica prestava grandes serviços ao reino. Em 1497, Dom Manuel tomou uma medida drástica: converteu todos os judeus de Portugal à força e resolveu o problema diplomático. Na prática, contudo, ele tolerou o judaísmo secreto e deixou os judeus praticarem sua religião, contanto que a manifestação não fosse pública. Mas a tragédia se abateria sobre os judeus, no início do século XVI. Em 1506, um surto de peste e secas em Lisboa acaba por levar o povo a uma histeria coletiva contra eles; muitas vilas e “judiarias” são saqueadas e milhares de judeus são mortos. Dom Manuel simplesmente perdeu o controle da cidade e somente dias depois conseguiu mandar tropas para debelar a rebelião. Em 1507, o rei permite a saída dos judeus de Portugal. É conhecida, nesta época, a figura do cristão-novo, alguém de mistura judaica, ainda que muito distante, que pratica a religião católica, mas é sempre eterno suspeito de praticar o judaísmo secreto. Eles já existiam na Espanha e acabaram por se alastrar ao reino português. E o reino lusitano, adotando o método espanhol de centralização política e religiosa, instaura a inquisição, em 1536. Os judeus partem em uma nova diáspora, para a Holanda. Assim, Sefarad deixa de existir.

A tradição judaica da diáspora ibérica consagrou belas canções, dentro de seu imaginário artístico e folclórico. Os judeus medievais, em geral, falavam o árabe na Península, embora também compartilhassem com um dialeto próximo do castelhano, chamado “ladino”. O termo “ladino” vem do verbo “enladinar”, ou seja, tornar “latino”, “traduzir para o latim”, já que os judeus, com a expansão cristã, aos poucos, começaram a adotar o castelhano como sua língua. O castelhano judeu é uma corruptela do castelhano original, já que há muitas expressões mescladas de arabismos de judaísmos notórios. No entanto, o ladino preserva as estruturas gramaticais do castelhano medieval.
Quando os judeus partiram da Espanha, preservaram o culto da língua ancestral ladina, seja nas suas músicas, seja nas suas comunidades. Era relativamente comum nas comunidades judaicas, descendentes dos judeus da Espanha, usarem o castelhano ladino como língua comum. Era também comum que os judeus da Turquia, da Grécia, do Marrocos, e mesmo nas comunidades da Europa do Leste, sendo de origem sefardita, ainda guardassem resquícios espanhóis de cultura. Daí essas canções terem sido guardadas e passadas por uma tradição oral, retratando o dia a dia das “juderías”, das “alfamas”, os bairros judaicos de uma realidade extinta.

As canções judaicas falam de casamento, de fé e de amor. Há nas modinhas amorosas, um certo ar aristocrático, trovadoresco. De fato, o judaísmo espanhol era aristocrático, intelectualizado, elitista, com um leve toque árabe nas músicas e nas melodias. E o legado que deixaram na Espanha dá uma leve amostra da elevação cultural do povo judeu no mundo medieval.
(Música judaica medieval - século XV)

Wednesday, January 17, 2007

VOX IBERICA III: Al Andaluz e o mundo árabe entre duas Penínsulas.


Na Península Arábica, um povo do deserto se unifica sob a égide de uma nova religião no século VII. Os árabes, sob a pregação de Mohamad (Maomé), assimilam a religião islâmica. Com o lema “Alá é Deus e Maomé seu único profeta” e o livro sagrado Alcorão, os árabes constituíram toda sua vida política, social, econômica e religiosa no pensamento muçulmano. De fato, Islã, significa “submissão a Deus”. Enquanto preceito de conduta social, a sociedade árabe, antes dividida pelo politeísmo e pelas brigas entre clãs, agora, com o monoteísmo, poderia sonhar com um projeto imperial de expansão e de unidade política.

A busca e ânsia de riquezas, a fé no proselitismo religioso e a conversão dos povos, o excedente populacional e a ambição de domínios territoriais fizeram o povo árabe se expandir mundo afora através da Jihad, guerra santa. Envolvendo bravura e intenso fanatismo religioso, os árabes dominaram o Império Persa e conquistaram todo o Oriente Médio. Expandiram-se pelo norte da África invadindo terras do império de Bizâncio, conquistando os seus domínios em todo o Mar Mediterrâneo e causando pânico à Europa, aterrorizada pelos saques e pirataria às suas cidades litorâneas. As cimitarras não descansaram e os árabes invadem o continente europeu, tomando quase toda a Península Ibérica e expulsando os visigodos ao norte da região. Os sarracenos só foram contidos por Carlos Martel (o Martelo), na batalha de Poitiers, em 732, já na França. Sobrou o norte cristão da “Hispania”, resquício dos reinos cristãos, como foco de resistência ao invasor islamita. De uma Península, a da Arábia, os islamicos chegaram a outra Península, a Ibérica. Em menos de dois séculos, os árabes conquistaram um império que ia dos confins da Espanha até o Vale do Rio Indo, na Índia.

Uma característica que se consagrou na cultura islâmica medieval foi o cosmopolitismo, na absorção cultural de outros povos. A contribuição muçulmana está ligada a diversas áreas do conhecimento humano: alquimia, matemática, física, filosofia, literatura, arquitetura, medicina, astronomia e outras artes e ciências, além da música. Instrumentos náuticos largamente usados pelos europeus do século XVI, como o astrolábio, a balestrilha e a bússola, foram introduzidas pelos muçulmanos na Idade Média. A divulgação do zero, como da numeração indo-arábica (por serem originários da Índia), foram legados trazidos pelo Islão e que revolucionaram a matemática ocidental. O matemático e comerciante italiano Leonardo de Pisa, em seus contatos com os muçulmanos do Norte de África, no século XII, introduziu o sistema numérico indiano na Europa, substituindo a numeração romana. Este patrimônio cultural do império islâmico foi repassado aos povos dominados de Al Andaluz, denominação árabe da Península Ibérica. Na prática, uma boa parte do mundo europeu foi beneficiado pela cultura trazida dos árabes. Até o século XV, os legados culturais das ciências naturais, das artes e mesmo da filosofia (já que os árabes eram grandes conhecedores de textos gregos, junto com os bizantinos), foram absorvidos com sucesso pelos cristãos, influenciando profundamente a cultura européia.

A palavra “Al Andaluz” apareceu pela primeira vez, em 716, quando os invasores islâmicos cunharam uma moeda bilíngüe, identificando, além dessa expressão, o antigo nome da região, Hispania. Há muitas controvérsias quanto a origem do termo “Al Andaluz”:
a mais próxima, diz respeito a “Jazirat-Al Andaluz”, ou a “ilha do Atlântico”, ou “Atlântida”, ou a lenda da Ilha perdida, herdada da mitologia grega.

Em 711, a Espanha é anexada ao Califado Omíada de Damasco, na Síria, e se torna parte do Império Islâmico. Em 756, uma guerra política interna na Síria, encabeçada pela família Abássida, massacra a família Omíada da Síria, e o príncipe sobrevivente dessa dinastia, Abd Ar-Rahman, foge para a Espanha e declara um Emirado independente, o de Córdoba. Séculos depois, os árabes, politicamente desorganizados, acabaram sofrendo a resistência dos reinos cristãos.

Se por um lado, a história espanhola medieval é conturbada politicamente, em guerras e lutas dinásticas entre cristãos e islâmicos, foi nesta época que conhecemos a coexistência cultural, por vezes pacífica, entre cristãos, judeus e islâmicos. A cultura árabe foi tão influente na região da Espanha, que praticamente, salvo os reinos cristãos, a grande maioria da população da Península falava árabe. Se os reinos cristãos ainda preservavam os dialetos vernáculos do latim, uma boa parte de sua população não era refratária ao idioma árabe. Na verdade, o grosso do mundo árabe acabou por se miscigenar com os reinos cristãos. Várias famílias nobres cristãs tinham relações sanguíneas com muitas famílias árabes e muitas de suas brigas tinham caráter dinástico, embora a religião também os diferenciasse. Havia entre árabes e cristãos, relações de vassalagem e suserania, e era comum os reinos árabes se aliarem a reinos cristãos, lutando contra reinos cristãos, e vice-versa. A história de El Cid, grande cavaleiro espanhol do século XI, retrata a junção entre as culturas islâmica, cristã e judaica e suas relações políticas, a despeito das diferenças culturais. Quando Afonso VI, rei de Castela, retomou Toledo, ele se declarou “rei de duas religiões”. Mesmo no túmulo do Rei Fernando III, de Castela, conquistador de Córdoba, o epitáfio foi escrito em quatro línguas diferentes: árabe, hebreu, latim e castelhano. Na realidade, as divergências políticas e religiosas entre o mundo espanhol medieval tinham um caráter especial:
acabavam sendo briga de família. Judeus, católicos e islâmicos eram uma grande família dividida. Apesar do intercâmbio cultural entre as religiões e povos da Península, as tensões políticas e religiosas eram visíves; e os ressentimentos, latentes, explodiam em guerras e violência.

Ademais, era conhecido o relativo respeito, entre os principados árabes, com o costume das populações subjugadas. Em parte, esse caráter de tolerância era peculiar aos príncipes árabes da Espanha, homens de grande erudição cultural e pragmatismo político. Porém, tal sentido de tolerância não se restringiu a eles, existindo também entre principes cristãos espanhóis, que comungavam dessa política. No geral, os árabes eram conhecidos pela truculência e pela escravidão de populações inteiras. A fúria, por vezes, não poupava nem os judeus. E um histórico brutal de violência e opressão marcou trezentos anos de saques e pilhagens islâmicas nas cidades do Mediterrâneo europeu, até o ano de 1096, quando o Papa Urbano II, no Concílio de Clermont, conclamou a Primeira Cruzada. As cruzadas foram uma resposta brutal e violenta a esse tipo de atrocidades. . .
A Península Ibérica se tornou um conjunto étnico de judeus, cristãos de diversas origens, bérberes, persas, sírios, bizantinos, negros africanos islamizados e toda sorte de povos, muitos com expressões culturais próprias e dialetos diferenciados. Os judeus, conhecidos por “sefaradins”, rezavam em hebreu e falavam o dialeto “ladino” entre eles, uma mistura de castelhano, com expressões árabes e judaicas mescladas. Uma boa parte dos cristãos sob o domínio islâmico, chamado “moçárabes”, poderiam perfeitamente ser católicos romanos, enquanto falavam abertamente o árabe nos cultos, relegando o latim em segundo plano. Tamanha praticidade levou à tradução de uma bíblia cristã em árabe. Isto porque eles poderiam falar castelhano, galego, aragonês e catalão (ou então algo aproximado disso, já que as línguas vernáculas do latim vulgar careciam de uma estrutura gramatical clara). E se estes cristãos fossem bizantinos, rezavam e falavam em grego. A língua árabe transformara-se numa espécie de idioma universal das etnias englobadas dentro do império. Em alguns principados islâmicos, a liberdade religiosa era tolerada, com a condição de se pagar impostos ao governo. Os judeus e os moçárabes poderiam ser julgados conforme suas próprias jurisdições, tinham relativa liberdade de ir e vir e poderiam ter suas próprias lideranças comunitárias. Havia médicos judeus, estudiosos bizantinos, comerciantes sírios e cristãos, além de outros profissionais de várias localidades do Islã, que enriqueciam e dinamizavam Al Andaluz. Granada, Córdoba e Toledo eram centros pomposos na paisagem hispânica, com sua arquitetura arabesca, com suas ruas opulentas e ricas. O palácio de Alhambra (no árabe, a Vermelha), monumento assombroso de Granada, construído entre os séculos XIII e XIV, é um retrato perfeito da mais bela arquitetura árabe na Espanha. E a grandiosa mesquita de Córdoba, transformada em catedral pelos reis cristãos conquistadores, foi o resquício do antigo esplendor mourisco medieval. Córdoba, no século IX, chegou a ser a cidade mais povoada do mundo medieval.

Os cristãos do norte não estavam totalmente rendidos ao jugo muçulmano. A partir do século IX, a Espanha foi catalisadora de vários cavaleiros de toda a Europa, ansiosos por aventuras e terras, e profundamente devotos pela causa da Cristandade. Estes se reuniam em expedições militares cruzadistas a serviço dos reinos cristãos, envolvendo-se em sangrentas pelejas contra os mouros. Sob a égide de alguns cavaleiros, surgiram grandes dinastias, e grandes reinos renasceram sobre suas famílias e legados. No século XI, o reino de Leão e Castela expande-se ao norte do Rio Douro, expulsando os mouros da região. Destacaram-se nesta luta, dois irmãos, cavaleiros do Ducado da Borgonha, de nome Henrique e Raimundo, que por serviços prestados, casaram-se com as filhas do Rei de Leão e Castela, Dom Afonso VI. De Raimundo e seus descendentes, fora herdado o Reino de Leão e Castela, e, futuramente, nasceu a Espanha moderna. E de Henrique, o Condado Portucalense, (denominação originária de uma antiga cidade romana, “Portu Cale”, “Porto do Cal”), com obrigações de prestar vassalagem ao reino castelhano-leonês. De Henrique e seu filho, Afonso Henriques, posteriormente, nasceu o Reino de Portugal.

A partir de lutas seculares, os reinos cristãos se expandem e os principados árabes entram em decadência. Toledo, uma das mais importantes cidades islâmicas da Espanha, foi tomada por Afonso VI, de Castela, em 1085. Em Las Navas de Tolosa, em 1212, os árabes foram esmagados por uma coalização dos reis de Castela, Portugal, Navarra e Aragão. Em 1236, Dom Fernando III, o santo, Rei de Castela, conquistou Córdoba dos árabes, golpeando mais ainda o império islâmico, ao perder uma de suas mais preciosas cidades. No final do século XV, em 1491, os reis Isabel de Castela e Fernando de Aragão, cercaram o último principado islâmico da Espanha, Granada. O Rei de Granada, Abu Abd Allah, acabou por capitular, entregando a cidade para os cristãos, e em 1492, Granada foi anexada ao reino de Castela. Dizia uma lenda, que o sultão chorou quando entregou a cidade, enquanto sua mãe o repreendia, afirmando que ele chorava como uma mulher, ao invés de defender seu reino.

A conquista de Granada selou o fim do domínio islâmico na Península. Selou também séculos de entendimento entre o mundo islâmico, cristão e judaico. Em 1492, no intento de unificar a religião do reino, os Reis de Castela decretaram, no palácio de Alhambra, o edito de expulsão dos judeus. E em 1502, os mouros foram obrigados à conversão ao cristianismo ou a expulsão. Mais de cem anos depois, em 1609, no reinado de Felipe III de Habsburgo, os mouros que ainda residiam na Espanha foram definitivamente expulsos.

Uma questão a ser observada aqui, depois dessa breve esplanação histórica, é a música árabe na Península; uma boa parte dos instrumentos musicais europeus vem do mundo árabe. A guitarra espanhola é uma adaptação do alaúde, que por sua vez, vem do "ud" árabe. O violino e os demais instrumentos de arco, como as violas, as rabecas, provêm do rabab, tocado na Península e em muitas regiões do mundo islâmico. As castanholas, os saltérios, são instrumentos desenvolvidos e adaptados do oriente. Os cantos musicais dos trovadores e suas construções poéticas, algumas são adaptações poéticas da literatura islâmica. As influências são sentidas nos idiomas de Portugal e Espanha, cheia de palavras e expressões da língua árabe. E a música espanhola é praticamente toda inspirada no canto árabe. As músicas aqui expostas neste blog vão conferir a sonoridade da música trazida pelo islão, e sua ligação com a música ocidental.
(Música árabe de Península Ibérica - Século XIII)

1. Ajedrez.

2.Las noches de encuentro.

3.Consoladme niñas al Alba.

4. Bashrafa samai sika

5.Despedime

Tuesday, January 16, 2007

VOX IBERICA II: El Arte del Rey Afonso X, el Sabio.


O Rei Afonso X, el Sabio, de Castela, nascido em 1221 e falecido em 1284, encarnava a sabedoria da Península Ibérica no período medieval: o casamento feliz entre a cultura árabe, judaica e cristã. Afonso era um homem erudito: dominava o latim, o árabe, o castelhano e, provavelmente, o hebreu. Era cercado de poetas espanhóis e provençais, sábios judeus e árabes, e qualquer um que pudesse servir culturalmente à monarquia castelhana. Fundou a Universidade de Múrcia, que englobava as três religiões; o Studio Generale, criado em Sevilha, ensinava latim e árabe. E patrocinou historiadores da península, usando pela primeira vez, as fontes árabes, como objeto de estudo. Tal projeto fez nascer a “Crônica Geral da Espanha”, literatura escrita em vernáculo arcaico. Alimentou o desenvolvimento cientifico e a astrologia, com a tradução das “Tablas Toledadas”, escritas em 1080, por Azarquiel, astronômo árabe, e o “Almagesto” (no árabe, O Maior), de Cláudio Ptolomeu, que foram introduzidos aos conhecimentos universitários europeus e engendrou, futuramente, a tecnologia náutica portuguesa e espanhola do século XV. Foi pelo contato direto com as obras de Ptolomeu, que Copérnico começou a questionar a teoria geocêntrica, ou seja, a de que a Terra era o centro do universo e os europeus revolucionaram a física e a astronomia. Aliás, no reinado de Afonso, coletâneas de astronomia grega, muçulmana e judaica foram traduzidas para o castelhano e latim, além de conhecimentos de cartografia, aritmética, botânica, filosofia e teologia. A Espanha cristã tornou-se o portal do que havia de melhor da islâmica e judaica para o mundo europeu.

É de Dom Afonso X, a compilação de um dos mais completos tratados de direito medieval: Las Siete Partidas, um estupendo código jurídico, inspirado no direito canônico, no Corpus Júris Civilis e no direito comum costumeiro dos reinos espanhóis. A obra foi composta em 1256 e somente terminada em 1265 e foi trabalhada pelos mais eminentes juristas da Espanha, sobre a direção do próprio rei. “Las Siete Partidas” são um verdadeiro monumento jurídico e constitucional primitivo, em que se discute as prerrogativas dos poderes do reino, as suas estruturas políticas, as regras concernentes ao direito civil, penal, comercial, dentro outros. Sua influência na Espanha e em Portugal fora sentida por séculos, sendo uma obra-prima similar ao próprio Corpus Júris Civilis de Justiniano, imperador de Bizâncio. A intenção de Afonso X era unir os reinos cristãos espanhóis em torno de seu reinado, através de uma centralização política que acabasse com as divergências políticas internas dos nobres. Ele queria encarnar a figura do império romano, na tentativa de criar um sistema jurídico unificado.

Como político, Afonso teve um reino conturbado. Seu sucesso foi tomar Cadiz e Cartagena para o reino de Castela e conseguir impor o reconhecimento político das anexações pelos árabes. No entanto, o seu propósito de unificação política foi obstado pela resistência política dos nobres, que se rebelaram contra os propósitos do rei e causaram a fragmentação política do reino, somente pacificado a partir do século XV.

Entre tantas qualidades do rei castelhano, uma delas foi marcante e chegou até nós:era compositor e trovador. Afonso X foi responsável por uma das maiores obras-primas do medievalismo espanhol:As Cantigas de Santa Maria.A coletânea de peças compreende canções de vários trovadores, como a do próprio rei, em homenagem e culto a Virgem Maria. São peças cheias de lirismo e ironia, que relatam histórias do Evangelho e de milagres atribuídos à Virgem.

Muitas canções anônimas medievais faziam menções aos milagres da Virgem Maria, outro objeto de devoção do homem ibérico medieval. O culto marianista já era tradição em uma boa parte do cristianismo e se tornou mais forte, a partir do século XII, com as manifestações em louvor a Mãe de Deus, a Theotokós. Na Península Ibéria, o culto marianista ganhou expressões próprias, tornando-se um dos mais profundos símbolos de devoção religiosa do catolicismo medieval espanhol e português. Aliás, a figura da Virgem Maria acabou por se confundir com a idealização da dama palaciana, já que tal como a Virgem Santíssima, a mulher amada era inatingível, pertencente a outro mundo. De fato, este outro mundo era a busca do homem medieval, que se refletia em todos os meandros de sua vida pessoal e social. E a música era uma linguagem próxima de contato com Deus.


(Cantiga de Santa Maria - Afonso X, El Sábio, 1221 - + 1284)


1.Non sofre Santa Maria.

2.A madre de Deus

3.Ben Cam´aos

Monday, January 15, 2007

VOX IBERICA I: A música de Santiago de Compostela.


Dizia uma antiga crença medieval que o apóstolo São Tiago foi sepultado em terras espanholas, na Galícia. Séculos depois, em 813, um eremita de nome Pelayo, encontrou uma tumba iluminada como uma estrela e aí teve uma visão, reconhecendo o túmulo do santo. Sobre a sua tumba foi construída a Catedral e a cidade, ambas batizadas de Santiago de Compostela. O termo “Compostela” é um vernáculo do latim e se refere à iluminação do túmulo, vista pelo eremita, que lembrava um campo estrelado, “Campus Stellae”. A cidade se tornou o centro de peregrinação de todo o mundo medieval, concorrendo em peso, com a Terra Santa de Jerusalém e a Cidade de Roma. Tamanha devoção causou esse apóstolo, que ele apareceu em sonhos ao Rei Ramiro de Aragão, afirmando que este ganharia a batalha sob sua proteção e que os islâmicos jamais conquistiram os reinos cristãos da Espanha. Na lendária batalha de Clavijo, em 834, relata-se a aparição do santo que, munido um cavalo e trajando uma armadura, descera dos céus e massacrou a mourama a fio de espada, salvando os cavaleiros cristãos do exército islâmico do emir Abdehan II. Daí a fama do apóstolo São Tiago, chamado “Santiago Mata-moros”, que entrou na consciência medieval como o baluarte da luta dos cristãos contra os mouros da Espanha, a "Reconquista" contra o Islão invasor. Santiago personificava a Espanha cristã, guerreira, devota e cavalheiresca do época medieval.

Santiago de Compostela não somente se tornou um centro de peregrinação, como um centro cultural. Foi a partir dessa cidadela que nasceu a língua portuguesa e espanhola modernas. E foi a partir dos hinos, canções e músicas lendárias dos peregrinos é que surgiu uma longa tradição musical a respeito dos milagres de Santiago Mata-moros. As músicas que serão apresentadas aqui retratam a riqueza musical dos peregrinos medievais que caminhavam estradas e mais estradas para a visitação do Santuário de Santiago. Cantavam os milagres do santo, as suas aparições e de sua história em Clavijo. Há várias origens quanto as músicas que são publicadas aqui: Castela, Leão, Navarra e Galícia, e embora seus lugares sejam conhecidos, os autores são anônimos. Reconhecemos nas peças, instrumentos medievais como saltérios, alaúdes, orgãos, flautas, tambores, rabecas e sinetes. Enfim, quando escutamos tais músicas, lembramos das longas trasladações das cidades medievais, os peregrinos de todas as classes sociais, plebeus, cavaleiros, escudeiros e até reis, que rendiam graças aos santos da Igreja e a Deus, nos lugares santos da Cristandade. E, em particular, São Tiago Maior.

Cantigas de Santiago de Compostela (Seculos XIII e XIV)

Sunday, January 14, 2007

Martin Codax, o segrel da Corte!


Pouco se sabe sobre a vida de Martin Codax. Ele viveu entre o século XIII e XIV na região de Galiza, na Espanha, e as únicas obras que sobreviveram foram as sete cantigas de amigo compostas em galego-português. Não se sabe ao certo se Codax era jogral, trovador, segrel ou menestrel, embora provavelmente fosse um segrel. Há de se fazer uma distinção terminológica entre jogral, segrel e menestrel para que o leitor entenda as relações estamentais do mundo medieval. O jogral era sempre gente do povo, que além de tocar músicas, fazia o papel de bufão da corte para o entretenimento dos nobres. Raramente os jograis compunham peças: antes, interpretavam e recitavam as poesias e peças alheias. Havia uma variação da palavra, o jogrel, uma espécie mais sofisticada de jogral, que acompanhava nobres e eclesiásticos. O segrel era um músico de inclinações eruditas, por vezes um ex-eclesiástico, que acompanhava um nobre ou uma corte, e compunha canções. Era quase sempre um homem de origem social média, (escudeiros ou plebeus distintos), com grandes qualidades intelectuais. O menestrel era um cantor errante, que chegava de cidade em cidade, vila em vila, corte em corte, fazendo apresentações em praças e cortes. O termo, posteriormente, se consagrou como musicista de capela, de catedral ou igreja. O trovador, ao contrário do jogral, do segrel e do menestrel, era um nobre de alta estatura social, que compunha peças para deleite próprio ou da nobreza. No entanto, com o tempo, essas distinções hierárquicas acabaram se mesclando, perdendo sua origem etmológica inicial.


As sete cantigas de amigo são as únicas trovas neste estilo que foram encontradas com partituras de música intactas. Porém, a pequena e valiosa obra reflete as tendências musicais da época: As contigas de amigo refletiam as tendências comuns da música islâmica e francesa, na idéia de dar voz à mulher aflita. Comenta-se que muitas cantigas de amigo são inspirados na poesia islâmica, conhecidas como muwassahas e zéjeles, que retratam o erotismo e a contemplação feminina, como protagonistas do canto. Aliás, quem escutar a sonoridade do canto musical das peças, perceberá uma leve influência árabe no uso da voz. Os instrumentos de corda que o digam, na figura da rabeca (em árabe, rabab) e no alaúde, (em árabe, ud), como companheiros dos trovadores e segréis da Corte. Cabe lembrar que muitas cantigas provençais de amor foram trazidas pelos cruzados do oriente, e adaptadas à realidade européia (embora os aspectos da cultura feudal e católica nas trovas provençais são particulares da sociedade européia medieval). De fato, muitas canções de amigo foram inspiradas nas cruzadas, já que os lamentos femininos são em nome do cavaleiros ausente, distante num campo de batalha no Oriente ou mesmo nas guerras da Reconquista Hispânica e Portuguesa. Tal estilo também é encontrado entre a corte francesa do século XII e XIII, e no mundo ibérico, a cultura provençal e islâmica acabam se entrelaçando numa identidade própria.
Não é mera coincidência que tal estilo de música se adaptou perfeitamente com a realidade das damas européias. O sujeito da canção não é o cavaleiro amoroso ou desdenhoso e sim a dama palaciana ou camponesa, que à espera do amado ausente, confessa suas agruras de amor a uma outra mulher, ou mesmo a um rio. Na verdade, tal situação reflete a condição das mulheres nos castelos e vilas, enclausuradas, que se confessam à pessoa mais próxima, ou seja, a mãe, a irmã ou mesmo uma outra amiga. Na canção de Martin Codax, a dama se dirige ao mar, à irmã, à Deus e à mãe, ao falar das dores da falta do amado. “Mia Hermana Fremosa, treides comigo”, confessa a dama para sua irmã. Em outra canção, a mesma donzela parece confessar ao amado: “Quantas sabedes amar amigo, trides comig´alo mar de Vigo: a banhar-nos-emos nas ondas”. Em suma, as cantigas de Martin Codax são uma das mais belas expressões musicais da Idade Média.
Martin Codax (século XIII- XIV)


Saturday, January 13, 2007

Hildegard Von bingen: a mística alemã e a música dos céus!


Estamos na Idade Média, mais precisamente no século XII. A Europa está em guerra contra os mouros. O Reino de Jerusalém, conquistado com muito sangue pelos francos, e os cristãos da Península Ibérica resistem a combates intensos contra os infiéis islâmicos. A França exporta cruzados para todas as partes do mundo, na luta pela defesa da Cristandade, e reis, duques e condes se armam para defender os reinos cristãos de “Outremer”. E a cultura européia, depois de épocas difíceis de guerras e atribulações, floresce nas abadias e nas cidades, em um novo renascimento intelectual e comercial.
Nada mais errado do que afirmar que a Idade Média é a "Idade das Trevas". Vários "renascimentos" são observados em toda sua trajetória. A primeira delas poderia ser chamada o "Renascimento Carolíngio", quando Carlos Magno criou mosteiros e investiu nas letras, artes e na educação formal, com o desenvolvimento das "Artes Liberais", Trivium e Quadrivium ( a música era uma delas). Sabe-se que as artes liberais intencionavam condensar todo o conhecimento antigo dentro dos moldes do ensino cristão e foi desenvolvido, em parte, pelo bispo Isidoro de Sevilla, no século VIII D.C. Se analisarmos pelo ângulo dos desenvolvimentos notáveis do mundo medieval, a Idade Média é o mundo dos renascimentos!
A segunda "renascença" medieval ocorre no século XII. Cidades renascem das cinzas, depois de séculos de decadência, rotas comerciais são descobertas com as cruzadas e novas técnicas agrícolas são desenvolvidas. Na abadia de São Vitor, Hugo, grande teólogo, destaca-se no ensino de seus alunos e de sua filosofia de educação, a Didascálicon. Na verdade, a obra do Didascálicon é inspirada nas Sete Artes Liberais e desenvolve com maestria, um verdadeiro tratado de educação medieval. São Bernard de Clarvaux é um misto de teólogo e de pregador cruzado. E na abadia de Rupertsberg, na Renânia, uma excêntrica monja alemã nutria a fama pelas extraordinárias capacidades de intelecto. Era uma bela mulher de origem nobre e profunda força mística, além de ser incrivelmente intelectualizada e escritora de livros de medicina e teologia. Ademais, comenta-se que essa mulher escreveu os primeiros livros de medicina e de botânica do mundo europeu medieval. Se no mundo medieval era raro alguém ser alfabetizado, que dirá então das mulheres? Todavia, a história da mulher era envolvida em mistério: ela tinha visões divinas, que a inspiravam a escrever seus livros de filosofia. E tendo um completo domínio de ervas, medicina e mesmo filosofia, a monja ainda dominava uma outra arte, incomum no mundo feminino medieval: a música!

Hildegard von Bingen, nascida no ano de 1098 (o mesmo ano da tomada de Jerusalém pelos francos), e falecida no ano de 1179, era uma mulher fora de seu tempo. Tal fama impressionou o grande Bernard de Clarvaux, que trocava correspondências com ela. Audaciosa, a própria abadessa pregava os valores cristãos ao povo das ruas, desafiando, assim, os votos de clausura. O papa, que leu suas obras, ficou impressionado com os dons místicos e a poderosa inteligência da abadessa, abrindo uma comissão para investigar a sanidade e as visões místicas da monja. Depois de várias entrevistas, a comissão considerou a monja sã e tempos depois de sua morte, ela foi beatificada.
Quem em sã consciência ouvir as belíssimas músicas de monja alemã, voltará perfeitamente aos tempos dos cruzados e das grandes catedrais góticas, um retrato perfeito do auge do misticismo medieval. Ela escreveu cerca de quase cem peças musicais em toda sua vida para uso de convento, além de um oratório chamado Ordo Virtutem, que fala de um dialogo das freiras com Deus. A primeira canção aqui em link se chama “O Jerusalém”, que se inicia nas seguintes palavras: O Jerusalém, Áurea Civitas, Ornata Regis Púrpura!(Ó Jerusalém, Cidade de Ouro, Ornada Rainha Púrpura) e é um clamor de devoção à Terra Santa. A segunda peça, a titulo de demonstração, se chama “O Felix Apparicio” (Ó Feliz aparição), canto místico, que fala da aparição de Deus aos devotos. Há a peça "O Beatissime Rupert", que implica referências à cidade da autora. E a outra peças são instrumentais, no uso de rabecas medievais.
Hildegard Von Bingen (1098 - + 1179)

O Oráculo Musical: o universo da música antiga!


Este blog foi criado para divulgar a música clássica, em particular, a música antiga. O termo "música antiga" é usado para denominar a tradição musical, que vai da Idade Média até o século XVIII. Muita injustiça se cometeu ao ignorar o brilhante repertório musical consagrado nessas épocas, já que a partir do romantismo, tal patrimônio foi esquecido, redescoberto muito tempo depois, em sua maioria, no século XX. Aliás, que dirá então de instrumentos de época, como viola da gamba, cravo, vihuela, violone, viola de braccio, cromorne, viola da roda, alaúde e muitos outros, ignorados pelo público? E os grandes mestres, como Machaut, Josquin de Près, Monteverdi, Corelli, Biber, Tomás de Victória, e mesmo os músicos anônimos, de partituras sem nome, que escreviam músicas para os entretenimentos da corte? Lembremos que Haendel e Bach, os mais famosos mestres do barroco alemão só foram desenterrados depois de algum tempo. Isso porque, muitas de suas obras, readaptadas ao piano e aos instrumentos modernos, ficavam descaracterizadas, sem aquela característica barroca típica que dava um caráter especial às suas obras. As partituras do mestre Bach estavam sendo usadas como papel de merenda de alunos de colégio, enquanto Haendel descansava em berço esplêndido, na Abadia de Westminter.
Muita gente ficou impressionada com o título deste site: o Oráculo! Tal nome dá uma idéia de paganismo, de cabala. Todavia, o termo combina perfeitamente com as razões deste blog, precisamente porque encara a música como uma abertura a outras dimensões. Os gregos concebiam o oráculo como um intermezzo entre os homens e os deuses. Lembremos que a música é a arte das musas, das deusas e das mulheres que inspiravam a poesia dos sons. Euterpe, deusa da música, Polínmia, deusa dos hinos, e Terpsicore, deusa de dança, estão em nossos corações, tal como Santa Cecília com sua harpa. Salomão dizia que "vinus et musica laentificant corde". (Vinho e música alegram o coração).

Há um outro aspecto da música, que é desprezada pela maioria das pessoas que a ouvem: ela nos abre portas para outros mundos, outras realidades. Os medievais consideram a música como uma arte, dentro do Quadrivium, porque a música representava a harmonia e a contemplação através dos sons. Daí a magnitude dos corais, das vozes que se misturavam ao ambiente das catedrais, parecendo vir dos céus e dos anjos. Quem ouvir as peças que serão publicadas aqui, viajará pelas épocas através dos sons e conceberá que a música é um palco que reproduz o nosso passado. A temática deste site é misturar música, história e figuras, aproximando o navegante virtual para mares nunca dantes navegados, numa linguagem comum da música e da história. Enfim, este site vem fazer a diferença, mostrando um repertório desconhecido e valioso, a fim de divulgar a boa música.