Thursday, April 19, 2007

História Trágico-Marítima III: Terra à vista!


Quando Vasco da Gama chegou, em 1499, Dom Manuel, encantado com as notícias da viagem, idealizou uma nova viagem para as Índias. Ordenou uma nova frota, a maior armada até então organizada pelo reino português e escolheu o homem que lideraria a empreitada: Pedro Álvares Gouveia, conhecido posteriormente como Cabral. Em carta régia, assinada no dia 15 de fevereiro de 1500, o Rei de Portugal manda as seguintes investiduras ao nobre, para liderar a nau-capitânia:

“(...)Fazendo vós a saber, capitães, fidalgos, cavaleiros, escudeiros, mestres e pilotos marinheiros e companhia e oficiais e todas as outras pessoas que aqui enviamos na frota e armada que vai para a Índia, que nós, pela muita confiança que temos em Pedrálvares de Gouveia, fidalgo de nossa Casa, e por conhecermos dele que nisto e em toda outra coisa que lhe encarregamos nos saberá muito bem servir e nos dará de si muito boa conta e recado lhe damos e encarregamos a Capitania Mor de toda a dita frota e armada. (...)Cumprais e façais inteiramente seus requerimentos e mandados assim e tão inteiramente e com aquela diligência e bom cuidado que de vós confiamos e o faríeis se por nós em pessoa vos fosse dito e mandado, porque assim o havemos por bem e nosso serviço e aqueles que assim o fizerem e cumprirem, nos farão nisso muito serviço. (...) Dada em nossa cidade de Lisboa aos 15 dias do mês de fevereiro. Antonio Carneiro a escreveu no Ano de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil e quinhentos”.


Pedro Álvares Cabral nasceu provavelmente, em 1467 ou 1468, em Belmonte, filho de uma nobre fidalguia, que remonta a Álvaro Gil Cabral, cavaleiro que lutou bravamente contra os castelhanos, ao lado do Mestre de Avis, como alcaide-mor do Castelo da Guarda. Na verdade, os Cabrais nasceram neste castelo e era uma linhagem de guerreiros servidores da Coroa. Tais serviços deram direitos hereditários para que a família possuísse os títulos de senhores de Azurara e do Castelo de Guarda e Belmonte. Um ancestral do navegador, o bispo de Guarda Gil Cabral, casou secretamente os amantes Dom Pedro I, rei de Portugal e Inês de Castro. E em nome disso, a sobrinha do bispo, Maria Gil Cabral, herdou todos os bens que o rei deixou ao eclesiástico. O pai de Pedro Álvares Cabral, Fernão Álvares Cabral, o “gigante da Beira”, era Cavaleiro da Ordem de Cristo e serviu o infante Henrique nas batalhas ao norte da África. A fama de “gigante” era devido a uma peculiaridade da família dos Cabrais: eram homens altíssimos, de dois metros de altura. Isso era assustador para a época, já que a grande maioria dos portugueses do século XV mal chegava a um metro e meio de altura. Era o segundo membro da família, e como tal, não herdara o nome dos Cabrais, sendo batizado, primeiramente, como Pedro Álvares Gouveia, sobrenome materno. O morgadio pertencia a seu irmão, João Fernandes Cabral, herdeiro do nome da família.

Belmonte não passava de uma cidade sonolenta, com apenas cem habitantes, quando adolescente, Pedro Álvares Gouveia foi mandado para a Corte, em Lisboa, estudar literatura, história, ciência, marinharia e artes militares. Na prática, os fidalgos da terra eram apresentados ao rei, em busca de fama, glória, sucesso e mesmo formar quadros militares e políticos para a monarquia. Em 1484, foi apresentado, junto com mais cinqüenta jovens, como “moço-fidalgo” da Corte, recebendo uma tença real pelos estudos e pelo rígido treinamento militar.

Foi nesta época que Pedro teve contato com a literatura náutica de seu tempo: era amigo do sábio e polido astrônomo judeu Abraham Zacuto, como de outros estudiosos hebreus de renome do reino. O “Almanaque Perpétuo” era livro de cabeceira dos interessados em ciências náuticas, já que descrevia as tabelas de posição do sol durante todo o ano e era um conhecimento perfeito para quem se interessasse por navegação. Ademais, os Cabrais tinham sólidas ligações com os judeus, já que em na sua cidade natal, existia uma pequena comunidade de “judiaria”, que praticava livremente sua religião e tinha grande amizade com o pai do fidalgo, Dom Fernão, o senhor alcaide das de Belmonte e Azurara. Pedro lia as grandes obras sobre navegação marítima: Imago Mundi, compilação de estudos gregos, latinos e árabes organizada pelo Cardeal Pierre D´Ailly no inicio do século XV, uma obra de geografia muito cultivada entre os portugueses. Aliás, o Imago Mundi possuía teorias de fundo astronômico, que precipitariam os estudos posteriores de Nicolau Copérnico, já que teorizava os movimentos de rotação do planeta Terra sobre si mesmo. Isso porque, ao contrário do mito comum sobre a Idade Média, a obra já descrevia a esfericidade da Terra. Comenta-se que em Portugal, a obra era disputada pelos estudantes fidalgos, já que havia uma rara edição veneziana na biblioteca de Alcóçava. Os relatos de Marco Pólo sobre a China eram outra literatura que encantava os portugueses e era comentado entre os estudiosos professores e sábios das escolas fidalgas e universidades. Em 1487, Pedro Álvares foi elevado a Escudeiro Real e, para receber o batismo de fogo, foi enviado em combate ao Marrocos, contra os mouros na praça de Ceuta ao norte da África. Depois de uma sangrenta peleja contra os infiéis islâmicos, em uma missa especial, fora agraciado cavaleiro pelo Bispo Dom Diogo, na mesma cidade, e preparou-se para os rituais de iniciação na Ordem de Cristo. Vestido com a manta branca, Pedro, como de costume, recebe um leve golpe de espada no pescoço e é outorgado com o título de cavalaria. Em 1492, morre-lhe o pai, Dom Fernão, e seu irmão mais velho, João Fernandes, adquire o nome dos Cabrais, os títulos de senhor de Azurara e Belmonte, enquanto Pedro herda terras em Santarém. Embora isso não fosse comum, já que o primogênito poderia reivindicar direito a todas as propriedades, a família Cabral era bastante unida, e os numerosos irmãos dividiram a partilha. Em 1494, é elevado, finalmente a Cavaleiro da Ordem de Cristo.

Há de se fazer um adendo a essa questão: a Ordem de Cristo foi fundada em 15 de março de 1319, a pedido do rei português Dom Dinis, pela bula papal de João XXII, Ad ae Exquibus. Na prática, a Ordo Militae Jesu Christo era uma refundação da antiga Ordem dos Templários, ordem militar medieval fundada em Jerusalém, por nove cavaleiros francos, entre os quais, Hugo de Payens, em 1118, com o intento de proteger os peregrinos nas viagens da Terra Santa. Seu nome “templário”, diz respeito à sua localidade, nas ruínas do templo do Rei Salomão, nas cercanias da cidade sagrada. Eram verdadeiros monges armados, que faziam votos de pobreza e celibato e se tornaram o braço armado da Igreja. Embora se declarassem os “pobres soldados de Cristo”, durante dois séculos, os templários se tornaram uma das ordens mais poderosas, senão a mais poderosa da Europa. Ainda no século XII, a Ordem dos Templários tinha isenção de obediência de qualquer episcopado e era um órgão totalmente independente de reis e bispados, sendo ligado diretamente ao papa.

Eles, provavelmente, foram os precursores, junto com os prestamistas judeus, do sistema bancário europeu. Só que a diferença estava na eficiência e versatilidade dos nobres templários, já que não sofriam as mesmas restrições civis dos usurários hebreus e tinham um complexo econômico de terras e dinheiro, que compreendiam Portugal, Espanha, França e uma boa parte da Europa. Emprestavam dinheiro a reis e senhores feudais e cobravam juros. Afirma-se, também, que foram empreendedores da conta-corrente e remessa de dinheiro no continente. Uma casa templária, ao transferir dinheiro de uma cidade para outra, evitava, assim, o roubo nas estradas, relativamente comum naquelas épocas. Um burguês ou nobre poderia colocar uma quantidade de ducados de ouro na Espanha e transferir na França, sem precisar levar o dinheiro. Bastava que depositasse em conta-corrente na Espanha, enquanto um cavaleiro da ordem ia direto na França, avisar à outra sede da ordem para liberar o dinheiro.

No final do século XIII, um rei começou a temer e invejar o poder dos templários: Felipe IV, o Belo, rei da França. Homem belo, ambicioso, tirânico, ardiloso e cínico, ao desejar tributar os eclesiásticos e mesmo endividado com Roma e os templários, por causa das guerras do reino, começou a hostilizar o papa Bonifácio VIII. O rei se recusa a pagar impostos a Roma e ameaça o clero francês, confiscando terras, tributando os eclesiásticos e mesmoencarcerando-os. O papa publica uma bula papal, Unam Sancta, em que reivindica a supremacia do poder espiritual da Igreja sobre o poder temporal dos príncipes. No entanto, emissários do rei da França vão a Roma e prendem Bonifácio VIII, que é torturado a mando do rei. Vitima de maus tratos, quando é libertado, em 1304, o papa acaba por falecer. Então Felipe prepara um golpe que abalaria o mundo medieval: mediante chantagem, ameaças de violência e corrupção, elege um cardeal de sua confiança, Bertrand de Gouth, um clérigo inescrupuloso, como papa Clemente V. Os tumultos na Itália, com uma população indignada com a intervenção do exército do rei francês no papado, convenceu a Felipe a transferir o papado. Não somente elegeu um papa sob sua outorga, como instituiu a sede papal para Avignon, em 1309, afrontando a tradição papal romana. Avignon não pertencia ao reino francês, e sim território do rei da Sicília. Porém, o rei da Sicília sofria as influências do reino francês e estava nas mãos de Felipe IV.

Isso deu poderes ao monarca de conspirar e destruir a Ordem dos Templários na França. Em 1307, os cavaleiros templários foram presos, e mediante horríveis torturas, acabaram forçados a assumirem culpas que não tinham: sodomia, idolatria, apostasia. No concilio de Viena, entre 1311 e 1312, a ordem templária foi extinta e posteriormente a maioria dos cavaleiros foi executada na fogueira. Jacques De Moley, o último grão-mestre templário, também foi barbaramente torturado e morto na fogueira, em 1314. Contudo, a Ordem dos Templários fincou suas raízes e sua riqueza vultosa nas terras lusitanas. Muito se discute sobre os tesouros da ordem, já que várias lendas foram criadas a respeito de seu destino. Mas é certo afirmar que a Ordem de Cristo, tal como a sua antiga similar francesa, era muito rica e, posteriormente, bancou uma boa parte dos empreendimentos marítimos do século XV.



De fato, uma boa parte dos bens dos templários, em Portugal, viraram propriedades da nova Ordem fundada pelo rei Dom Dinis. O antigo convento de Tomar, sede da ordem templária, e sua cúpula, assim chamada a “Rotunda”, tornou-se sede da recém-fundada portuguesa. O rei Dom Manuel e demais reis portugueses, em suas audiências, costumava reunir os fidalgos em Tomar, organizando, junto com o mestre da ordem, complexos rituais de iniciação dos novos moços-fidalgos. Mesmo as regras internas da ordem, inspirada nos monges cistercienses e beneditinas, eram as mesmas da Ordem templária. No século XIV, as regras severas de votos de castidade foram abandonadas e os fidalgos poderiam se casar. Pedro Álvares Cabral era filho dessa ordem. Como as velas encorpadas das naus e caravelas portuguesas, com suas cruzes, não negavam às origens de seu empreendimento e patrocínio.

No domingo do dia 8 de março de 1500, depois da missa na Ermida de São Jerônimo e da procissão dos cavaleiros, junto com o séqüito do rei, treze navios, dez naus e três caravelas, a maior frota portuguesa formada para atravessar as Índias, esperavam o capitão-mor Pedro Álvares e mais seus pilotos. Cerca de mil e quinhentos homens acompanhariam a armada. Pedro acabara de receber o estandarte da Ordem de Cristo em mãos e bênçãos do próprio rei. A população esperava na praia do Restelo, na beira do Tejo, na expectativa de saída das naves. Músicas eram tocadas e um povo saudoso jorrava lágrimas de despedida. Os próprios pilotos estavam apreensivos, pois deviam aproveitar as direções das ventanias de março, para que a frota zarpasse, sob pena de perder sua temporada e iniciar toda a trajetória, só no ano seguinte. No entanto, os ventos não ajudaram no dia e a tripulação passou a madrugada inteira esperando, até que só no amanhecer do dia 9 de março, é que conseguiram navegar Tejo abaixo, até chegar ao Atlântico. As doze naves passaram mais de um mês em alto-mar, até chegar às terras do Brasil. Embora tivesse sido uma viagem relativamente pacífica, as calmarias do mar assustavam tanto quanto as tempestades. Os navios ficavam paralisados, boiando de um lado para outro, numa imensidão terrível de águas, sem movimentação e isso entediava toda a tripulação. Por vezes, como faltava, às vezes, comida e água, tripulações inteiras morriam de fome nos navios. No dia 9 de abril de 1500, os portugueses passaram pelo Equador e realizaram seu domingo de Páscoa, quando se encontravam a 250 quilômetros da costa brasileira. Dias depois, encontram algas marítimas, os “botelhos”, e pássaros vindo da região onde se direcionavam, sinais de terras à vista. Na tarde do 22 de abril, aportam em Monte Pascoal, no Brasil.

O impacto da natureza brasileira e dos homens que os lusitanos encontraram nas praias é um dos mais impressionantes choques culturais que se há notícia. Depois de uma reunião entre os capitães da tripulação, os portugueses desceram dos seus batéis para a terra firme e encontraram indivíduos morenos, nus, armados de setas e flechas, que falavam línguas estranhas e eram irreconhecíveis para os europeus sob todos os aspectos. Nicolau Coelho, um dos capitães da armada, pediu para que baixassem as armas e jogou chapéus e gorros para os nativos. Os mesmos retribuíram jogando cocares e colares de penas aos portugueses. Gaspar da Gama, o velho judeu protegido de Vasco da Gama, e o “língua”, o tradutor da frota, tentava falar árabe, hindu e outros demais dialetos sem sucesso. Dois dias depois, os portugueses detiveram dois nativos da terra e os levaram até ao capitão Pedro Álvares. Eles ficaram contemplativos, observando os portugueses, suas roupas, seus objetos de ouro. Assustaram-se quando viram uma galinha no convés; quando beberam vinho, cuspiram. E no final, acabaram por adormecer no assoalho. Os portugueses pegaram um cobertor e abrigaram os índios.

Um brilhante narrador desta história, o escrivão Pero Vaz de Caminha, mostra essa impressão mútua entre os portugueses e nativos, posteriormente chamados “índios”. Caminha era filho de uma burguesia enriquecida e nobilitada, descendente de uma cepa de cartorários e homem de grande educação humanística. Descreve-os da seguinte maneira: “ E tomou uma almadia dous daqueles homens da terra, mancebos e de bons corpos(...) A feição deles e serem pardos, maneira d’avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos..." Se os portugueses tiveram impacto no contato com os primeiros “selvagens”, a Europa inteira, anos depois, deliciou-se com este retrato idílico da humanidade primitiva, fora das vilezas da civilização. Thomas Morus, na literatura, recriou a Utopia, através de relatos portugueses. Na verdade, até o personagem principal da história, Rafael Hitlodeu (ou, no grego, “aquele que conta disparates”) é um navegante português. A mesma impressão teve Montaigne a respeito dos índios brasileiros capturados pelos franceses, e levados ao porto de Havre, na Normandia, por volta de 1550. Enfim, a idéia mítica do bom selvagem contagiou o mundo europeu, durante vários séculos!

No domingo do dia 26 de abril de 1500, Pedro Álvares mandou criar um altar para a missa em terra firme. Era a primeira missa no Brasil, ministrada pelo Frei Henrique de Coimbra. Os nativos ficaram espantados com aqueles complexos rituais em latim. À tarde, os portugueses começaram a tocar música, junto com os índios. No dia seguinte, 27 de abril, os portugueses foram fazer aguada na praia e trocaram seus tradicionais gorros vermelhos de marujos, por cocares, arcos e flechas e papagaios e araras graciosas. Cabral, em sua carta a Dom Manuel, batizou a terra de “Vera Cruz”. No entanto, Dom Manuel ficou insatisfeito com a denominação, porque lembrava a cruz de Marmelar, em que se dizia, o pedaço da cruz de Cristo foi posto na relíquia. Batizou a nova terra de “Santa Cruz”. Porém, muitos portugueses se referiram à terra “achada” como “dos papagaios”, em alusão aos animais. Muito posteriormente, em alusão ao pau-brasil abundante naquela terra e, mesmo à lenda medieval da Ilha do Brasil, a terra foi assim nomeada.

Na noite do dia 27 de abril, o sábio mestre João Faras, astrônomo e matemático, um judeu cristão-novo, tal como Gaspar da Gama, observava os céus escuros do Brasil, quando descobriu o “cruzeiro do sul”, uma constelação vista nos céus do sul do Equador. Na realidade, a descoberta do cruzeiro do sul deu incremento revolucionário a tecnologia náutica portuguesa, já que a estrela do norte, que era o guia fixo para os navegadores identificarem sua posição através das estrelas, não era visto ao sul do Equador. E uma carta a Dom Manuel, João Faras chega a rascunhar cinco pontos, formando uma cruz, e descrevendo a sua descoberta. No dia primeiro de maio de 1500, Cabral mandou erguer uma enorme cruz para fazer sua última missa naquela terra. Os lusitanos fizeram uma verdadeira procissão, com estandartes do reino e da Ordem de Cristo e, acompanhado dos índios, os cerca de mil e quinhentos tripulantes das naves se despediam do lugar. Até hoje se discute as reais intenções dos portugueses, ao explorarem o território do Brasil. Uma boa parte dos historiadores concorda que o “achamento” do Brasil não foi ocasional, foi planejado para fincar o domínio português, dentro do Tratado de Tordesilhas. A ausência de fincar um padrão de pedra, conforme era tradição entre os navegantes portugueses, no sentido de afirmar que aquela terra já tinha dono, presume-se que os lusitanos já tinham consciência da existência dessa terra. A gigantesca cruz, se servia para algo, era para dizer que os portugueses apenas confirmavam aquilo que consideravam seus.

Dois dias depois, partiram, em direção às Índias, para enfrentar as provações do Cabo da Boa Esperança, na atual África do sul. Uma nau, a de mantimentos, guiada por Gaspar de Lemos, foi mandada pra Portugal, com arcos, flechas e estoques de pau-brasil, encontrados no litoral, e mesmo um índio tupiniquim, que foi apresentado às cortes de Lisboa. As cartas dos pilotos, de Pero Vaz de Caminha ao rei, como outras, de marujos que escreviam para suas famílias, seguiram viagem para a terra natal. E o resto seguiu viagem. Descendo mais ao sul, chegaram no cabo tormentoso no dia 23 de maio e foram vítimas de uma tempestade. As crônicas da época comentam que as ondas eram tão altas, que os navios quase voavam pelos mares e os céus negros e fechados apavoravam os tripulantes portugueses, que oravam a Deus e aos santos, para escapar daquela situação. Dizia-se que o ranger da madeira dos cascos dos navios, como se ameaçasse arrebentar, deixaram os marujos consternados. E ocorreu a tragédia: as naus de Aires Gomes, Simão de Pina e Luis Pires, capitães de Cabral, foram engolidos pelo mar, levando mais de trezentos homens. O destino não poderia ser mais paradoxal: a caravela de Bartolomeu Dias, o primeiro homem que atravessou o Cabo Maldito, em 1488, naufragou, junto com mais de oitenta homens. Depois da morte de quase metade da tripulação, dos treze navios, só restaram sete e em 16 de julho, e eles chegaram a ilha de Quiloa, no Quênia, com as naves avariadas e a população esgotada psicologicamente. Prosseguindo viagem, a nau de Diogo Dias, irmão de Bartolomeu, se desgarrou da frota e foi parar no Oriente Médio, pelo Mar Vermelho. Em final de julho, passou por Sofala e não foi bem recebido pelo xeque local, e no dia 2 de agosto, chegou a Melinde. Lá foi bem recebido pelo chefe local e um piloto hindu o guiou até as Índias. Na noite do dia 13 de setembro de 1500, Cabral e sua alquebrada frota chegam a Calicute, na Índia.

Os hindus e islâmicos da cidade opulenta e rica ficaram assustados com as naus portuguesas, fortemente armadas, no porto. Cabral enviou alguns indianos, outrora capturados por Vasco da Gama, e solicitou ao Samorim-rajá (ou o “senhor do mar”), príncipe de Calicute, que desse salvo-conduto aos portugueses, para que descessem em terra firme. Glafer, (assim era o nome do Samorim), era sobrinho do Samorim que havia recebido Vasco de Gama e a despeito dos ressentimentos deixados em 1498, recebeu bem os lusitanos. Para garantir a segurança do capitão-mor, foi exigido que alguns indianos ficassem no navio, como reféns. Passaram-se dias de negociação, até que o problema foi resolvido. Feito o acordo, Cabral desceu da nau-capitania e apresentou uma carta do Rei de Portugal, escrita em árabe, considerando uma aliança entre os dois reinos. O rei também enviou presentes ao príncipe, como moedas de ouro, pratarias, roupas de luxo, sedas e brocados, bem diferente da gafe de Vasco da Gama, que enviou potes de açúcar, melado e bacias de cobre. Todavia, a corte do Samorim era tão rica, que os pobres portugueses eram humilhados pelos brincos, jóias, diamantes e sedas vistosas da corte do príncipe. Para agradar mais ainda o Samorim, a pedidos, Cabral enviou uma caravela com Pero de Ataíde e mais de setenta homens e atacou com canhões uma grande nau islâmica. Capturou uma tripulação de trezentos mouros e mais cinco elefantes e levou a nave para o Samorim.


Foi permitido aos portugueses fazer feitorias no local. Entretanto, os hindus e os árabes ficaram indignados com a interferência dos portugueses. Começaram a boicotar as relações entre os portugueses e o Samorim e as naus lusitanas esperavam, impacientes, a permissão do príncipe para fazer negócios e levar as tão preciosas especiarias da Índia. Os portugueses experimentavam sérias dificuldades para carregar suas naus, já que a situação instável e mesmo a hostilidade árabe impediam de arranjar negociantes. E o príncipe, que poderia autorizar o comércio no local, pressionado pelos mercadores mouros, não fazia nada em favor dos portugueses. No inicio de dezembro, uma nau muçulmana saia de Calicute, abarrotada de especiarias, quando os portugueses, ofendidos com a negligencia do Samorim, aprisionaram o navio, passaram a espada na tripulação e confiscaram as mercadorias. O piloto árabe da nau aprisionada foi ter com o Samorim, exigindo providências para que destronassem os portugueses do local. Os mercadores árabes, junto com os hindus, envenenaram a situação. O Samorim acabou por acatar a decisão e no dia 16 de dezembro de 1500, uma turba de árabes e hindus armados atacou a feitoria portuguesa, matando cinqüenta e quatro lusitanos desprevenidos, entre os quais, o fidalgo Aires Correa e o próprio Pero Vaz de Caminha. O filho de 11 anos de Aires Correa e o frei Henrique de Coimbra fugiram do local, nadando até a nau do capitão Cabral. Informado dos ataques, na manhã do dia 17 de dezembro, Pedro Álvares mandou alinhar os navios e bombardeou a cidade inteira. Suas tropas furiosas saquearam e incendiaram onze navios islâmicos no porto, matando cerca de 600 pessoas. Uma boa parte de Calicute foi devastada pelos canhões no porto e ficou em ruínas. Nas palavras de um piloto da armada: “Nós matamos infinita gente e causamos muito dano”.

Cabral zarpara no dia 20 de dezembro e foi para Cochim, cidade inimiga de Calicute e fez aliança com o Rajá da cidade. Abarrotou suas naus de pimenta do reino, gengibre e canela, além de outras especiarias. Instalou uma feitoria portuguesa na cidade e, no dia 16 de janeiro de 1501, partiu de volta pra Portugal. De volta a Melinde, a nau de Sancho de Tovar encalhou num banco de areia e depois de descarregar as mercadorias em outras naus, Cabral mandou queimar o navio. Sobraram cinco navios a partir. Dobraram o Cabo da Boa Esperança mais ameno, em 22 de maio de 1501 e chegaram a Berzeguiche, atual Dakar, em 2 de julho. Encontraram o navio perdido de Diogo Dias, com sua tripulação de apenas sete homens, esfarrapados, indigentes e esfomeados. No mesmo porto, Cabral encontrou três navios, a mando do Rei Dom Manuel, com a missão de explorar a nova terra descoberta por ele: Brasil.

O primeiro navio da frota de Cabral chegou a Lisboa, em 23 de junho de 1501. Era a nau “Anunciada", bancada pelo banqueiro florentino Bartolomeu Marchioni, que deu satisfações a seus sócios, escrevendo cartas a Florença, sobre a viagem. Cabral chegou quase um mês depois, no dia 21 de julho de 1501 e foi recebido pelo rei e sua corte, em Santarém, a mesma cidade onde o fidalgo de Belmonte morou durante toda a sua vida. Os navios abarrotados de especiarias foram tão lucrativos aos negociantes, investidores e mesmo a Coroa Portuguesa, que as cotações do mercado de Veneza foram alterados abruptamente. Cabral foi premiado com uma pensão de 30 mil reais e se tornou um favorito do rei. Todavia, Cabral caiu em desgraça: Dom Manuel planejava uma nova armada para a conquista das Índias e desforrar contra Calicute, quando o capitão-mor, até então amado e elevado a herói pelo rei e pelas cortes, recusou-se a ir. Isso magoou o rei e Cabral foi condenado ao ostracismo.

Em 1503, Cabral se casa com a donzela Isabel de Castro, sobrinha de Dom Afonso de Albuquerque, posteriormente Duque de Goa e vice-rei da Índia, e a terceira mulher mais rica de Portugal. Passou seus últimos dias em Santarém, a terceira maior cidade portuguesa, com uma população até então de 9 mil habitantes, administrando suas propriedades, enquanto, amargurado, foi relegado ao esquecimento. Posteriormente herdou o nome da família Cabral e ainda se via sua presença, nas liturgias da Ordem de Cristo. Ele provavelmente faleceu em 1519 ou 1520, embora nas contas de pagamento de pensões reais à sua esposa e filhos, datadas de agosto de 1520, há uma citação póstuma: que Deus o perdoe! Seu filho, Fernão Cabral,foi também navegador e capitão da nau São Bento, a mesma que naufragou, junto com o poeta Luis de Camões. Isabel de Castro transladou o corpo do marido, em 1529, para a Igreja da Graça, em Santarém. Em 1534, Isabel foi alçada camareira-mor da infanta Maria, futura esposa do rei Felipe II da Espanha e provavelmente faleceu em 1538, juntando-se a seu marido, no jazigo perpétuo da igreja.

A viagem de Cabral abriu portas para a conquista portuguesa nas Índias. O tio de sua esposa, Afonso de Albuquerque, anos depois, expandirá o domínio lusitano nas Índias e se tornará senhor absoluto de uma parte da Índia, aterrorizando os mouros e hindus da região. Para alguns críticos historiadores orientais, ele iniciou um período colonialismo mais sanguinário e a conquista do mundo pelos europeus. Por intermédio de Cabral que se inicia a história do Brasil e da colonização portuguesa na região, acabando por surgir, séculos depois, uma nova nação. Cabral representa a complexidade do homem europeu: misto de cavaleiro medieval, guerreiro templário da Reconquista Ibérica, e um educado fidalgo da Renascença, investigativo, impetuoso, destemido, inquieto e desafiador. Cabral é como muitos homens de sua época: uma transição entre dois tempos, entre duas realidades que aparentemente se chocam, mas que na prática, representam uma unidade; o agonizante mundo medieval e o nascimento da Idade Moderna. Em suma, um homem fronteiriço dos tempos modernos.


(Cancioneiro de Belém- Século XVI).

1 comment:

Anonymous said...

Muito bem escrito, você ia gostar de conversar com meu pai, ele é historiador e pesquisa a ocupação holandesa em PE a uns 15 anos para um romance que ainda esta na metade.

Você talvez não seja tão mala quanto parece.

Ass. O Oportunista da comu "Racismo, Não!"