Monday, February 26, 2007

O amor cortês:arte e processo civilizatório. . .

Quando falamos de civilização, sempre lembramos do direito, da filosofia, das artes, da política, das letras, da música e de outras atividades intelectuais da cultura humana. Sem esquecer, naturalmente, dos costumes. Por falar em costume, eis que um dos aspectos mais marcantes do processo de civilidade, é precisamente o amor. Falo do amor, não somente do sentimento em si, como também dos jogos amorosos, das cortesias, das juras, das manifestações poéticas, e enfim, dos compromissos de afeição entre um homem e uma mulher. Quando um homem manda rosas, abre as portas do carro, faz poesias, escreve cartas, toca uma seresta ou paga a conta da mulher amada, está se falando de séculos e séculos de regras, costumes e ações que se arraigaram na cultura humana, a fim de sofisticar as relações humanas. O particular de tudo isso é que tais regras de etiqueta amorosa foram desenvolvidas entre a Idade Média e a Renascença, em uma época conhecida por ser particularmente difícil e violenta.

Muitos historiadores impiedosos afirmam que a Idade Média é a Idade das Trevas. Contudo, será que há coisa mais medieval, mais cortês, mais cavalheiresca do que beijar a mão da dama? Ou de cantar a seresta? O seresteiro de hoje é o trovador de séculos atrás. A poesia de culto ao feminino é uma herança que tem raízes não somente na poesia trovadoresca, como também na religião. Foi o cristianismo, na influência judaica, que criou esta reverência ao feminino no ocidente, como objeto de amor. Os Cantares de Salomão são um exemplo clássico de ritual amoroso, escrito em poesia, como forma de demonstração de afeto de um homem pela mulher. Por outro lado, o erotismo das musicas árabes trazidas pelos cruzados, nas suas investidas na Terra Santa, trouxeram os elementos estilísticos das trovas européias e do amor cortês. O troubadour franco, que vinha das sangrentas guerras contra os sarracenos, trazia na bagagem uma viola e uma inspiração amorosa. Seja na Corte de Eleanor de Aquitânia, como nas aventuras e desventuras da Terceira Cruzada de seu filho Ricardo Coração de Leão, eis que ouvimos as músicas de amor cantadas no francês antigo. Não esqueçamos das regras amorosas de André Chapelain, de tão magnífico tratado do amor cortês.

O que é o alaúde e a guitarra, senão instrumentos musicais árabes? Aliás, se os francos criaram trovas e mais trovas de amor, os castelhanos e os galegos foram grandes cantadores do amor cortês. Os próprios galegos e castelhanos não negam suas origens francas nas figuras dos Condes da Borgonha, guerreiros que posteriormente consolidaram o Reino de Portugal e Castela. Aliás, eles introduziram um culto relativamente incomum da donzela amada: a mistura do amor à mulher pelo amor a Virgem Maria. Há na música ibérica um sentido dúbio de linguagem amorosa, em que o amor e a religião se misturam ao erotismo. Não se deve esquecer que o amor do cavaleiro a sua dama é uma relação de suserania e vassalagem, tal como um senhor e servo. A dama é a “mia Señor” enquanto o cavaleiro é servo da mulher amada. O beijo na mão da donzela vem deste princípio de submissão amorosa. Isto porque quando se escuta as músicas amorosas de Santiago de Compostela, ouvimos os cantares dignos dos árabes, mas trovados em galego-português. De fato, essa relação do amor cortês ao culto do feminino tem a ver com a fundamentação platônica do romance amoroso na Idade Média.



Interessante perceber que este sentimento de pureza amorosa da dama inatingível é uma regra comum em quase todos os homens apaixonados. Numa sociedade guerreira, patriarcal e onde os casamentos eram arranjados, era perfeitamente possível entender do porquê da platonização da dama inatingível. Em especial na Península Ibéria, nos reinos árabes, este culto platônico do amor feminino estava associado a uma velha tradição árabe, quando as donzelas muçulmanas solteiras eram proibidas de serem vistas pelos homens antes do casamento. Na Espanha Islâmica, tais damas viam o mundo pelas janelas cobertas de arabescos de madeira que as tornavam invisíveis, e isso atiçava a fantasia dos homens, apaixonados pela figura da mulher que não viam. Os judeus espanhóis não faziam diferentes em suas cantigas de amor soletradas em ladino, ou seja, o espanhol judaico. Eles se apaixonavam até “d´un aire d´una mujer, d´uma mujer muy hermoza, linda de mi corazón”. . . tal como tocava em suas canções.

Por outro lado, a discrição no trato amoroso era uma espécie de etiqueta, de jogos amorosos entre os amantes. Se temos as músicas e poesias de amor, lembremos das “rosas que falam”. Se a mulher é divina, ou quase santa, é também um belo ser da natureza, uma rosa, mistura de beleza e vaidade. Já dizia o poeta do Rio de Janeiro para sua dama: as rosas não falam, simplesmente as rosas exalam o cheiro que roubam de ti. . .aiiiii. . .


Um outro aspecto interessante do amor cortês é sua relação com a morte. O amor se confunde com a fatalidade da vida, já que parece que os sentimentos sublimes do amor se obscurecem com a extinção do homem. De fato, a relação entre o amor e a morte parece ter duas relações: o amor é uma energia feroz, destruidora, que acaba consumindo a alma do amante. É ferida mortal, capaz de destruir as esperanças da vida na pessoa amada. E por outro, a morte liga o amor a eternidade dos amantes, quando este amor é sentido e intenso, só que transitório pela vida. A morte tem um sentido simbólico tanto do sentimento destruidor como da eternidade. Aliás, a morte era uma obsessão, acompanhava o homem medieval nas suas tragédias cotidianas, e seu consolo era acreditar na eternidade, dentro de um universo fatalista do mundo religioso. Juras de amor eterno, para muitos poetas, são eternos até depois da morte. Petrarca e Dante Alighieri dedicaram versos e mais versos a duas donzelas loiras, desejadas mortas e inatingíveis, Laura e Beatriz. Na Commedia de Dante, Beatriz é a mulher que conduz o poeta ao Paraíso. E os versos de Petrarca viraram temas de amor e morte em muitas canções italianas da Renascença.

Porém, o que é o amor cortês? Ser cortês vem da palavra cortesia, que é gentileza, que por definição é ligada a idéia da corte. Por conseqüência, o cortês acabou por se tornar o cortesão, ou seja, o homem nobre da corte, com seus modos, valores, etiquetas e regras da prática aristocrática e amorosa. Essas regras acabaram por se tornar os códigos da cavalaria e posteriormente uma ética comum do povo. E daí vem o termo “cavalheiro”, que nada mais é do que uma conceituação advinda de cavaleiro.

Neste ínterim, outras práticas foram aperfeiçoadas como forma de demonstração de amor, a partir da renascença. Um aspecto interessante é o amor à distância implicada no amor cortês. Ele é um amor ritual, sutil, simbólico, cheio de nuances e puramente platônico. Um exemplo disso é o que podemos chamar um dos mais belos tratados de cortesania, O Livro do Cortesão, escrito pelo fidalgo italiano Baldassare Castiglione, em 1527. Em um de seus capítulos, o livro nos revela a relação fidalga do cortesão com a dama palaciana: discreta, desinteressada, espiritual, em que a demonstração de amor a dama não seja tão direta a ponto de assustá-la, mas também não tão escondido em que ela não possa notar. A amizade do cortesão e da dama disfarça o amor interior que cada um nutre pelo outro. Mas em contrapartida, a mulher donzela é o centro das atenções do cavaleiro. O talento do cortesão em dominar vários idiomas, dançar, tocar instrumentos musicais e ser um bom manejador da espada e no cavalo, visava chamar as atenções da dama. No entanto, essa atenção deve ser conseguida com “sprezzatura”, displicência, como se a natureza culta, gentil e galante do cortesão fosse algo inerente e natural dele, sem artificialismo ou afetações.

Voltando aos amores à distância do cortesão, eis que um ritual muito comum aos amantes modernos que é guardar o retrato da pessoa amada. Em épocas passadas, o retrato às vezes significava o culto amoroso de uma pessoa já falecida, em que sua figura num amuleto ou mesmo num pequeno quadro eternizava as lembranças na fisionomia da pessoa morta. Isto porque na Renascença, a pintura conheceu seu auge de divulgação em famílias nobres. Há uma história de um cortesão elizabetano destruidor de corações femininos, que pela brecha da porta, viu uma dama contemplar por horas seu retrato, feito a pedido da mesma a um pintor.

É claro que o amor cortês não era em si só platônico. Uma boa parte desses jogos amorosos chegava ao que podemos dizer “finalmente”. O platonismo aparente disfarçava segundas intenções. O caso mais clássico e mais polemico é o Don Juan. Ninguém sabe ao certo sua história, e sim a fama do cavalheiro cortesão sofisticado, impetuoso, mulherengo e sedutor, arrasa-quarteirão de sentimentos femininos. Diz-se de um cavaleiro espanhol discretíssimo e que andava em dia com as etiquetas amorosas da cortesania, que era um verdadeiro furacão de mulheres na corte espanhola. Raramente uma mulher lhe escapava.

Temos um outro fenômeno, relativamente recente para os padrões do amor cortês, mas que se incorporou nele: as cartas amorosas. Raramente na Idade Média se escrevia cartas, até porque a população européia em geral era analfabeta. Cartas eram escritas pelos doutos da época, que era o clero e por uns raros nobres cultos. Na Renascença, a alfabetização começou a ser difundida e as cartas amorosas começaram a aparecer. Parece que, para burlar as convenções da época. Mulheres condenadas ao casamento arranjado trocava cartas com seus amantes platônicos e muitas delas fugiam. Outras esperavam as cartas dos seus cavaleiros que estavam nos campos de batalha, vencendo distâncias e mais distâncias. E numa sociedade em que as normas rígidas de conduta se contrastavam com o desejo de burlá-las, mulheres enclausuradas nos conventos amavam e eram amadas pelas palavras do amante, na pena e no papel. A carta está para o século XVI e alhures, como a internet está para as distâncias e dificuldades atuais. Mesmo assim, o charme das cartas nunca se apagou. Cartas são pessoais, intimistas, pois a palavra em punho do escritor está diretamente vinculado no papel, ao contrário da impessoalidade virtual. As palavras escritas no papel expressam sentimentos, erros, acertos e construções lingüísticas de como eles foram escritos. Já a técnica implícita da internet não retrata nem metade disso. Isto, sem contar a história de pessoas que escreviam cartas amorosas umas as outras e jamais se conheceram. É incrível pensar numa forma de amor deste jeito. Mas provavelmente deve ter existido.


A manifestação do amor cortês foi um processo artístico e civilizatório, que tornou as relações entre homem e mulher cada vez mais fortes em laços afetivos. Elevou-os ao infinito. Quando se vê que hoje em dia os jogos da cortesania, as poesias, as exaltações do amor, as serestas, as rosas, o beijar da mão, e todos os demais rituais aristocráticos que humanizaram o amor entre o homem e a mulher podem estar em vias de se extinguir, eis que me surge a imagem da mesa farta com luz de velas: a manifestação do amor cortês nostálgica do ambiente do passado, numa realidade que pode não existir mais.
(Canções do amor cortês: entre o amor e a morte - século XVI).

Sunday, February 18, 2007

Tempos Modernos: a Casa de Avis e o nascimento de Portugal.

O Retábulo de São Vicente, de autoria do pintor Nuno Gonçalves, possui um simbolismo interessantíssimo: o santo, padroeiro de Portugal, segura um livro sagrado, uma bíblia ou um livro de horas, enquanto vários devotos o veneram e o cercam ao redor. A pintura é dividida em várias partes: uma mostra vários fidalgos de armadura e espada, em posição de oração, e bem acima, o clero, reconhecido pelas mitras e pelas batinas; são bispos, cardeais, como que acompanhando uma procissão. Em outra cena, uma donzela se encontra ajoelhada e mais acima, uma monja e vários monges, enquanto no outro extremo do retrato, mui provavelmente se vê um senhor, de expressão austera e um jovem, quase menino, ambos de alta estirpe da nobreza: o Infante Dom Henrique e o próprio príncipe herdeiro Dom Afonso, que viria a ser rei de Portugal, sob o nome de Afonso V, o Africano. Em outras cenas dos retábulos, alguns súditos são identificados pelos traços de humildade nas roupas e nas expressões, os “arraias-miúdas”, conforme assim dizia o cronista Fernão Lopes: os trajes parecem indicar as origens plebéias dos retratados. Em suma, Nuno Gonçalves retratou, de forma especial, os indivíduos da sociedade portuguesa do século XV, no auge da Casa de Avis.

Portugal nasceu de uma epopéia: a Reconquista, com a expansão do Reino de Leão e Castela ao norte do Rio Douro e o estabelecimento do Condado Portucalense (menção a “Portu Cale”, Porto do Cal, antigo porto romano), fruto da recompensa do reino castelhano para o conde Henrique, vindo do Borgonha, na luta contra os mouros. O condado devia prestar vassalagem ao Reino de Castela, a fim de defender o reino ao sul. A partir do Castelo de Guimarães, o filho desta Casa, Dom Afonso Henriques, através de muitas guerras, acaba por expandir seu feudo contra os islâmicos, derrotando-os em Campo d`Ourique, em 1139. No entanto, em 1140, recusa-se a prestar vassalagem ao antigo senhor de Castela e na batalha de Valdevez, derrota as tropas castelhanas, declarando a independência do Reino de Portugal e fundando, juntamente, a casa dinástica da Borgonha. Sua coroação foi reconhecida pelo papa, somente em 1179, quando o próprio Afonso Henriques foi elevado à realeza, ocasião em que pacificou a luta entre os dois reinos. Foi neste intervalo de tempo em que Afonso Henriques, agora Afonso I de Portugal, conquistou Santarém, Lisboa e Évora dos muçulmanos. Consolidada a existência do reino português, os cristãos “moçárabes”, sob o jugo islâmico na região do Rio Douro, deixam de considerar a língua árabe, e como o latim se tornou uma língua esquecida e fora da compreensão para a maioria da população, foi legitimado o galego como linguagem comum, identificando-se com a fala de Santiago de Compostela.

Com a independência do Condado Portucalense, o galego, língua primitiva surgida do latim vulgar, tal como o provençal, castelhano, francês, italiano e várias dissidências menores, ganhou autonomia e expressões próprias, uma vez que se libertou da forma etimológica do latim clássico. A descaracterização do latim na fala vulgar do povo tinha tudo a ver com a perda da referência escrita da linguagem latina. Ou seja, com a carestia da escrita, já que a população, em geral, era analfabeta, a expressão coloquial adquiriu novas formas de linguagem, haja vista que não tinha regras específicas para a construção das palavras. Quando o reino português outorgou o dialeto galego, não pensemos que isso tinha um caráter necessariamente nacional ou institucional. A língua, neste contexto, tinha apenas uma função oral. O latim oficiava ainda muita coisa, porque era a única língua com peso que inseria a unidade espiritual da sociedade medieval, dentro de um contexto cultural ancestral romano e mesmo, da Igreja Católica. Em algumas aldeias de Portugal era possível não raramente encontrar camponeses ou nobres falando expressões castelhanas ou leonesas sem notar diferenças com o galego. Ou, em alguns casos, confundiam-se até com o árabe.

O galego só começa a ganhar forma institucional, em Portugal, quando se torna língua escrita, tanto como documentação histórica, como principalmente literária. A escrita recém estabelecida não tinha compromisso com uma gramática coesa, já que os escritores se preocupavam mais em reproduzir as expressões fonéticas e da fala. É o chamado “período fonético”, onde a escrita era confusa e diversa, variando de feudo para feudo, região para região. Em compensação, nesta mesma época desenvolvia a literatura trovadoresca.

Um fator que contribuiu para o desenvolvimento literário do galego foi o alto grau de refinamento da pequena corte portuguesa, cuja mentalidade era culturalmente francesa no costume. O trovadorismo provençal fincou raízes profundas em Portugal e no desenvolvimento de sua língua, uma vez que criou fundamento de maior conteúdo e enriquecimento do idioma. O termo “galego-português” ou “português antigo” pode ser enquadrado nesse ponto de vista histórico do português, onde a literatura cria uma identidade artística, cultural e, posteriormente, nacional, propiciando a língua portuguesa, tal como a conhecemos hoje. O resquício cultural francês na arte provençal, herança da prosperidade carolíngia, é provável que tenha surgido na corte de Afonso Henriques da Borgonha. Mas há comprovações de que o galego, antes de ser também português, possuía escrita, embora não como função literária. O mais antigo trovador que se tem notícia é Soares de Paiva (nascido em 1140), contudo, o mais antigo escrito é a “Canção da Ribeirinha”, de Paio Soares de Taveirós, em 1198.

Para melhor compreender o pensamento trovadorístico português, é preciso acompanhar o pensamento vigente da época. A sociedade portuguesa, tal como a sociedade européia medieval, partia-se das solidariedades comuns entre a religião e as relações feudais. Suserania e vassalagem, valores herdados da organização política germânica, estipulavam critérios sociais através da hierarquia e estamento social, embasada na lealdade e submissão de um indivíduo de classe inferior para outro de classe superior, em troca de favores mútuos. Na tradição germânica, tal relacionamento implicava a fidelidade do grupo para com o líder, que ao reconhecer os serviços cumpridos, concedia favores a seus subalternos. A Igreja Católica soube cristianizar tais pactos, introduzindo valores judaicos-cristãos, em vista de legitimar a autoridade dos nobres. Tal como os reis de Israel, homenagens, ritos de cavalaria e compromissos de lealdades comuns entre nobres e plebeus e mesmo as coroações dinásticas, eram unções que imitavam a reverência do “Messias”, ou melhor, do “Ungido”, no Antigo Testamento. A religião católica influenciava profundamente, junto com a cavalaria, a ética comum, refletindo sobre a conduta individual. Sendo uma sociedade de estamento, cada indivíduo tinha direitos e obrigações de acordo com a classe social no qual pertencia. E a Igreja, detentora da cultura e paladina dos valores católicos, apregoava uma idéia transcendentalista da realidade, com a difusão da fé cristã. A moral católica influenciava cada costume do homem medieval europeu, reverente pela idéia de Deus, do Juízo Final e obcecado pelo sobrenaturalismo. A sociedade portuguesa não fugia à regra. Pelo contrário, historicamente, Portugal tornou-se uma braço armado do catolicismo romano, junto com a Espanha, herdando o papel da velha tradição cavalheiresca do reino franco.

As cantigas de amor, embora houvesse algo profano no afeto direcionado à mulher, sua expressão é de um profundo platonismo, onde a figura feminina é inatingível, reproduzida na tristeza e no amor fatalista. Numa sociedade onde as relações conjugais eram relações de contratos, ou seja, casamentos políticos arranjados, eram compreensíveis as idealizações de uma amada inalcançável. O mais curioso é a relação do trovador com sua dama, ou melhor, o “amor cortês”, o sentimento de submissão e vassalagem à mulher amada, comparada a um status senhorial e suserano. Nas poesias amorosas, os trovadores direcionam à sua amada como “mia señor”, haja vista que na sociedade medieval, a mulher não tinha personalidade jurídica e a língua galega arcaica não concebia flexões de gênero para papéis exclusivamente masculinos.

Embora o reino português seguisse o princípio medieval da “divisão” do reino para governá-lo, na prática, a uniformidade lingüística e cultural, além da tradição empreendedora da monarquia na fundação do país, acabou por favorecer, desde cedo, a centralização política precoce do reino. Embora houvesse conflitos de ordem dinástica e hostilidades internas à centralização do poder real, no entanto, a monarquia portuguesa possuía um conjunto de famílias nobres bastante unidas e coesas, ocasião em que neutralizava as dissidências internas do país. Há outro aspecto que influenciou a centralização do reino, que era o combate ao inimigo comum, na figura dos mouros e do próprio reino de Castela. Portugal foi a única nação que conseguiu preservar a independência política, frente à ascensão do reino castelhano como monarquia centralizadora e imperial da Península Ibérica. Curiosamente, porém, uma boa parte da nobreza lusitana recalcitrante, frente às investidas da autoridade monárquica, aliava-se aos reis de Castela. Há de se compreender que o conceito de nacionalidade, nesta época, não existia e as lealdades sociais e políticas eram relacionadas a pactos de casta ou de famílias. Isso porque as famílias nobres que disputavam entre si o poder possuíam variados graus de parentesco. Mesmo a família real de Castela, que reivindicava direitos dinásticos ao reino português, tinha relações consangüíneas com a Casa real portuguesa. Henrique, senhor do Condado Portucalense e pai de Afonso Henriques, era genro de Afonso VI, já que se casou com a filha bastarda do rei de Castela e o próprio Afonso Henriques era primo de seu rival, Afonso VII, de Castela. Aliás, o próprio Afonso Henriques guerreou contra os exércitos da própria mãe, contra a anexação do Condado Portucalente pela Galícia.


Em 1249, o Reino de Portugal, na figura de Dom Afonso III, conquista Algarve dos mouros, consolidando o território português atual. Em 1290, Dom Dinis, rei de grande cultura e compositor de várias trovas medievais, funda a universidade de Coimbra. Dom Pedro I, dito, o “cruel”, protagonizou uma das histórias mais marcantes da crônica e literatura portuguesa: quando era príncipe, foi apaixonado por uma donzela galega, chamada Inês de Castro, que era dama de companhia de sua esposa, Constança. O caso foi mais além, quando o príncipe herdeiro começara a ter filhos com a jovem, e a assumiu publicamente, ameaçando a estabilidade política entre os reinos de Portugal e Castela. Falecida Dona Constança, o trono português estava aberto a dona Inês e seus possíveis bastardos. O rei Afonso IV e a nobreza portuguesa, temendo as influências políticas castelhanas sobre o príncipe Pedro, através da família e dos filhos da amante galega, fez de tudo para afastar a donzela do príncipe, exilando-a para a Espanha. Sem sucesso, o rei tomou uma medida drástica e monstruosa: mandou assassinar a pobre Inês. Numa manha fria do dia 7 de janeiro de 1355, na ausência do príncipe, que estava na caça, os executores entraram no Mosteiro de Santa Clara e degolaram a jovem dama. Quando o príncipe soube da morte da donzela, acabou por se rebelar contra seu pai, movendo uma feroz guerra civil para destroná-lo. Somente meses depois da morte de Inês, em agosto de 1355, o pai fez as pazes com o filho, embora nunca o tivesse perdoado pelo crime.

Quando ascendeu ao trono, em 1357, Dom Pedro moveu todos os esforços para vingar os assassinos da sua amada; assinou um tratado com o rei de Castela, para que se deportasse qualquer foragido de seu reino. Conseguiu capturar dois partícipes do assassinato de Inês de Castro, e numa demonstração de impiedade, que lhe fez a fama de “cruel”, mandou arrancar o coração dos executores, enquanto comia cebolas e se banqueteava. Depois mandou queimar os cadáveres em praça pública. Posteriormente, em 1360, elevou Inês de Castro a rainha póstuma de Portugal e legitimou seus filhos bastardos. Diz a lenda que mandou sentar o cadáver de Inês de Castro num trono e obrigou toda a nobreza portuguesa a beijar a mão da morta. O Rei Pedro faleceu em 1367 e antes de sua morte, mandou construir um dois belos túmulos, para si e sua amada, frente a frente, para que segundo a lenda, “possam olhar-se nos olhos quando despertarem no dia do Juízo Final”. Enfim, Camões chamava Inês de Castro como a mulher cuja tragédia foi “misera e mesquinha, que depois de morta foi rainha”. . .

Já no século XIV, a família da Borgonha entra em decadência. O filho legítimo de Dom Pedro I, o Cruel, com Dona Constança, o rei Fernando I de Portugal, faleceu, sem deixar herdeiros, em 1383. A crise dinástica ameaça a independência portuguesa, pois a filha de Fernando I, Beatriz, era casada com o rei de Castela e este reivindica direitos políticos sobre a coroa portuguesa. A nobreza portuguesa se divide: uma parte dos senhores feudais conspira contra a independência da Coroa e apóia a rainha Leonor Teles de Meneses, mãe de Beatriz. A rainha Leonor ainda reconhece publicamente um caso amoroso com o Conde de Andeiro, e ambos governam Portugal, para desgosto de uma boa parte do povo e da nobreza anticastelhana. O Reino de Portugal corre perigo e a burguesia nascente de Lisboa, junto com o povo e uma parte da nobreza nacionalista, aclama o filho bastardo do rei Pedro I, meio-irmão do Rei Fernando, Dom João, Mestre de Avis, como herdeiro legítimo do trono português.

Com o apoio de um grupo de nobres, entre os quais Dom Nuno Álvares, um dos homens mais ricos e poderosos do reino, no final do ano de 1383, o Mestre de Avis mata o Conde de Andeiro e organiza o motim. Explode então a guerra civil. Partidários da Rainha Leonor e do Mestre de Avis passam dois anos em disputas pelo poder, deixando o país cair na anarquia. Nuno Álvares é elevado a Condestável do exército do futuro rei e mostrando uma incrível habilidade militar, consegue esmagar as tropas da rainha. Em 6 de abril de 1385, as Cortes elevam o Mestre de Avis a rei de Portugal, o que faz Castela declarar guerra contra o reino, em favor da rainha Beatriz, esposa do rei de Castela. Na primeira investida, as tropas castelhanas cercam Lisboa, mas são quase todos dizimados pela peste.


Em 1385, os castelhanos invadem de novo o reino português e são fragorosamente derrotados na Batalha de Aljubarrota, salvando e consolidando a independência portuguesa. Mais uma vez a figura de Nuno Álvares, o Condestável português, se destaca para salvar o país. Liderando uma tropa de seis mil homens, entre portugueses e ingleses, destroçou a cavalaria castelhana, junto com a nobreza francesa que dava apoio. Os reflexos da Guerra dos Cem anos foram sentidos nas disputas dinásticas da Península, com o apoio militar da Inglaterra e da França aos dois reinos.

A família de Nuno Álvares fundou a dinastia dos duques de Bragança, que séculos depois, foi elevada a monarquia de Portugal. Com grandes serviços prestados a Coroa, o Condestável abandonou a vida militar e morreu muito idoso, abraçando a vida religiosa como carmelita, em 1431.



Dom João I casou-se com Filipa de Lancaster, filha do Duque de Lancaster, cumprindo uma histórica aliança com o reino inglês, e criou a nova família do reino português, a dinastia de Avis. Dom João era um homem politicamente arguto e tendo uma educação refinada, provinda da instrução que obteve como Mestre de Avis, possuía vastíssima cultura. Filipa de Lancaster era uma inglesa devota, amada pelo povo e temida pela nobreza, pela extrema rigidez católica de sua conduta. Dizem que moralizou a corte portuguesa, famosa por seus escândalos sexuais. No entanto, o legado do Mestre de Avis é que ele fundou a nacionalidade portuguesa e transformou Portugal na primeira nação-estado da história.


É a partir da geração de Avis que Portugal se destacará como potência mundial. Dom Henrique, o Infante “navegador”, filho de Filipa e de Dom João, funda a Escola de Sagres, uma sociedade em que reúne toda o conhecimento intelectual, desde então, da ciência náutica. São físicos árabes, matemáticos judeus, e muitos sábios de toda a Europa, que empreendem toda um conhecimento tecnológico marítimo, que transformará Portugal num império. Esse dilema expansionista já se inicia em 1415, quando Ceuta foi conquistada a favor dos portugueses. O rei Afonso V é elevado o “Africano”, por incrementar a conquista de novos domínios portugueses ao norte da África, financiando várias guerras contra os mouros. E a partir de todo o século XV, Portugal patrocina viagens para buscar novas rotas marítimas comerciais, a fim de superar o Mediterrâneo controlado pelos árabes, genoveses e venezianos. Lisboa acaba se tornando a capital da Europa. Rendas de todo o continente vão ali, financiando navios e novas rotas para o comércio com as Índias. Enfim, com a dinastia de Avis, inicia-se a Era dos Descobrimentos e a expansão da Europa pelo mundo afora!

Com a ascensão de Avis, a língua portuguesa começa a dissociar do galego, ganhando ares de língua nacional. O trovadorismo nesta época cai em desuso, sendo substituída por uma nova arte, influenciada pela corte espanhola: a música e poesia palaciana. Fruto de complexidade burocrática do Reino, a música e poesia palacianas surgem como entretenimentos de uma corte centrada na figura do rei. Tais poesias se caracterizam pela métrica de redondilha e pela sofisticação estilista da poesia, sem o primitivismo das trovas medievais. Grande parte das músicas e poesias é compilada, a mando do próprio monarca, como prova da dedicação do reino à cultura, e as coletâneas poéticas e musicais são chamadas de “Cancioneiros”. Muitas das músicas são datadas por volta de 1450, nos reinados de Afonso V e João II, embora fossem somente publicadas em 1516, por Garcia de Resende, sob o título de Cancioneiro Geral.

Uma outra documentação importante, diz respeito ao chamado “Cancioneiro de Elvas”, obra-prima compilada no século XVI, mas, com músicas que variam do final do século XV e no inicio do século XVI. O Cancioneiro de Elvas é uma perfeita caracterização de estilos musicais da época, que vão da polifonia flamenga, então nascente em Portugal, até os vilancetes (em castelhano, vilancicos) espanhóis, herdados do Cancioneiro Del Palacio. Curiosamente a influência espanhola é sentida nos cancioneiros portugueses: além da predominância das canções em língua castelhana, há peças do teatrólogo espanhol Juan Del Encina. As músicas palacianas falam do amor e da morte, no sentido do amor cortês. Do pessimismo da vida e da redenção religiosa. Ou no caso dos vilancetes, temas pastoris, que misturam com a singeleza do amor vilanês. Enfim, obras-primas que finalizam o mundo medieval e abrem portas ao Renascimento português.


(Cancioneiro de Elvas – Portugal – Século XV – XVI).


01. Que he o que vejo. (Anônimo).

02. Las tristes lágrimas mias. Instrumental (Anônimo).

03. Corazón mio. - Instrumental (Anônimo)

04. Cuydados meus tan cuidados. (Anônimo).

05. A la voy. (Anônimo).

06. Romerico Tú que vienes. (Juan Del Encina- 1469 - + 1530).

Tuesday, February 13, 2007

L´homme Armée: a Missa do cavaleiro armado contra os turcos!

No século XIV, um cavaleiro catalão, de nome Jeanot Martorell, escreveu uma obra-prima da literatura medieval: Tirant lo Blanc. A obra representa o auge dos livros de cavalaria, como também, a sua decadência, posteriormente retratada na obra de Cervantes, Don Quijote. De fato, Cervantes faz uma leve homenagem a obra “Tirant”, quando cita que o autor da obra devia ser jogado às galeras. Muito se comenta a origem de tal expressão; na verdade, era um trocadilho: “galera” não significava necessariamente o navio de remo, cuja força era movidas por escravos e sim as chapas de impressão de um livro. Além dos enredos fantásticos, inverossímeis e extraordinários da obra, há outro elemento marcante, que reflete os contextos da história: a reconstituição do imaginário europeu do século XIV. Em particular, retrata vários costumes comuns da Espanha no século XIV, como também do mundo europeu desde então. Uma delas, diz respeito aos valores, responsabilidades e ritos da cavalaria medieval. Em dedicatória ao Príncipe Dom Fernando de Portugal, o gentil homem Martorell fala das razões de sua obra, descrevendo as atribuições da nobreza e os valores da cavalaria: “(...)considerando a afeição e o desejo permanentes que tenho por servir vossa formidável senhoria, a relevando a rudeza da estrutura e desequilíbrio das sentenças, a fim de que por vossa virtude a divulgueis entre os servidores e demais pessoas, para que dela possam tirar o fruto adequado, sensibilizamo-nos o ânimo, e a fim de que não temam os duros feitos das armas e tomem partidos honrosos, empenhando-se no bem comum, para o qual existe a milícia. Ademais, esta obra iluminará aqueles que moralmente pertencem à cavalaria, apresentando exemplos de bons costumes, eliminando a urdidura dos vícios e a ferocidade dos atos monstruosos”.

Há uma particularidade neste trecho, que reflete o caráter da nobreza medieval: a de “milícia” pública, autoridade reconhecidamente política, na defesa, pelas armas, dos povoados, províncias, cidades e reinos. As ordens militares, e, concomitantemente, a ordem de cavalaria, servem para defender o povo contra a investida dos saqueadores e impor a ordem pública. Há de se compreender que o caráter público e privado se confundia na Idade Média: as famílias, as associações, as ordens militares e religiosas, eram sociedades privadas e políticas ao mesmo tempo. O status individual de cada membro dessa sociedade era pré-determinado pela casta a que pertencia e isso implicava solidariedade, num mundo violento e turbulento. Isso retrata, em parte, o caos político do mundo medieval e a força das associações privadas como elemento de sobrevivência. O indivíduo encontrava proteção em sua casta, sua família e suas alianças privadas. Suas ligações de vassalagem e suserania implicavam acordos mútuos, que iam desde alianças entre nobres de linhagens hierarquicamente diferentes, como até casamentos políticos. Entre trocas de favores, alianças familiares e políticas e homenagens entre senhores feudais e vassalos, a sociedade política medieval, precária, conseguia criar seus vínculos orgânicos de estabilidade social.

Por outro lado, a religião cristã era um consenso dentro da divisão política do mundo feudal. Ela era o consenso maior dentro da fragmentação política européia. O liame que unia o nobre, o plebeu, o servo, o homem livre, o burguês e mesmo o clero, era a Cristandade, que compreendia tanto os valores do cristianismo, como a sua representação institucional, na figura da Igreja Católica. Foi a Igreja quem criou a união espiritual da Europa. A sua autoridade fundamentou uma ética comum entre todos os povos europeus, unificando-os no plano dos valores, da cultura intelectual, das artes, da família, das instituições políticas e mesmo das regras da cavalaria e da nobreza. A finalidade da Igreja era orientar as instituições políticas e sociais, em vista dos valores de um ideal cristão de sociedade.

De fato, ficou por conta da Igreja, todo o legado da cultura clássica grega e romana, além da educação no mundo medieval. Em parte, esse predomínio cultural foi causado pelo total alheamento das variadas classes sociais, entre os quais a nobreza e a plebe, que não se interessavam pela manifestação intelectual. Isso criou um vácuo em que o clero se incumbiu de preencher, já que todo o legado de Roma estava na tradição intelectual da Igreja. Muitos afirmam que a Igreja quis “monopolizar” a cultura intelectual da Europa medieval: há um mito exagerado nisso, pois, na prática, a Igreja só monopolizou a cultura, precisamente porque não havia nenhum outro grupo que se inteirasse pelo conhecimento intelectual. Os nobres, em geral, eram analfabetos, e uma boa parte deles só pensava nas artes da guerra e da “milícia”. Até o imperador Carlos Magno não sabia ler e, só depois de muito tempo, aprendeu o latim. Os plebeus, entre os quais, servos e camponeses, apenas pensavam no esforço cotidiano das colheitas e somente muito tempo depois, as classes urbanas começaram a se interessar pela instrução, fundando os elementos culturais de um mundo laico.

Isso porque os livros eram muito caros e inacessíveis, além de valiosos. As bibliotecas medievais eram muito escassas de livros. Raramente passavam de mil exemplares. As práticas artesanais de fabricação de livros eram manuais e bastante precárias para produzi-las em grande escala. Embora seja difícil comprovar, afirma-se que só no século XIV, a fabricação de livros não passava de cem exemplares em um século. Havia um elemento adicional a isso, que era o fato de a população ser, em sua maioria, analfabeta. Daí a necessidade de livros serem produzidos apenas a uma classe minoritária de eruditos em mosteiros e universidades.

Alguns historiadores afirmam que a imposição do latim, enquanto língua litúrgica da Igreja, foi um precedente da monarquia carolíngia, que engendrando a nova unidade imperial, queria fundamentar um vínculo comum dos povos. Havia uma tendência interna, embora minoritária da Igreja, de considerar as línguas vernáculas na tradução de textos bíblicos ou mesmo nos ritos da missa. A ortodoxia grega, muito mais liberal neste sentido, considerou o vernáculo bíblico e quando iniciou o processo de conversão da Europa Oriental, traduziu uma boa parte de sua liturgia para o eslavônio. A Igreja Católica pretendia fazer essa concessão, quando os monges bizantinos Cirilo e Metódio quiseram pregar o cristianismo, dentro dos princípios do vernáculo. Porém, Metódio acabou sendo preso e o latim foi imposto como condição da difusão doutrinária da Igreja.

Se por um lado, a imposição tradicional do uso do latim pode ter dificultado a introdução do catolicismo romano no mundo eslavo, por outro, facilitou o processo de unidade da Igreja na Europa Ocidental. A sociedade européia medieval era uma babel de dialetos: elas variavam de feudo para feudo, casta por casta. Os nobres falavam um dialeto próprio, diferente da plebe; e as variações lingüísticas eram as mais complexas possíveis. Na Inglaterra normanda do século XII, os nobres ingleses falavam francês d´oil, enquanto a plebe falava o saxão e os rudimentos do que seria o inglês moderno. O rei da Inglaterra Ricardo Coração de Leão raramente usou o inglês em toda sua vida. Falava o francês do seu feudo, na Aquitânia, e uns rudimentos do latim. O latim, língua oficial da igreja e dos eruditos doutores do clero, tornou-se uma espécie de idioma comum do mundo medieval. A importância cabal dessa adoção, do ponto de vista cultural, foi a vinculação e difusão da cultura romana na sociedade européia, que conseguiu preservar suas raízes. Não haveria sentido escrever em língua vernácula no mundo medieval, sabendo-se que ficaria restrito apenas a um feudo ou cidade em particular. O latim significou um vínculo de comunicação entre os povos da Europa e sua cultura. Essa tradição intelectual de intercomunicação latina perseverou até o século XVIII, quando o latim foi substituído pelas línguas vernáculas modernas.

Outra discussão, muito polêmica, diz respeito à difusão da bíblia no mundo medieval. Muito explorada pelos críticos da Igreja, em particular, os de fé protestante e mesmo alguns céticos, diz respeito ao controle dos textos bíblicos. No entanto, há de se entender essa margem de idéias, dentro do contexto histórico. A leitura da Bíblia nunca foi condenada no mundo medieval. O máximo que a Igreja restringia era a livre interpretação dos textos bíblicos, que quebrassem a unidade e tradição da Igreja, gerando a heresia. Há se compreender que a unidade religiosa da Europa era uma questão essencial, um consenso político, cuja ruptura poderia causar sérios conflitos e convulsões sociais. As revoluções milenaristas medievais eram frutos da interpretação errada de textos, que fora de seu contexto tradicional, acabavam por gerar conflitos e guerras. O ápice dessa dissidência interna da Europa foi a Reforma Protestante, quando a revolta teológica de Lutero acabou por se tornar uma revolta nacionalista e religiosa, causando uma guerra civil na Alemanha e entre países no continente. A fragmentação do cristianismo europeu, no século XVI, foi um dos processos mais traumáticos e violentos da história européia.


Ao seguir a filosofia agostiniana de suma autoridade pelo bispado de Roma, como guardiã mesma da espiritualidade européia, a Igreja se incumbia no papel de orientar a tradição e conter as dissidências internas. É claro que tal autoridade implicava uma certa dose de abusos, já que uma parte do clero exigia o controle maior dos textos bíblicos e isso gerava proibições de acessos, a não ser por leituras autorizadas pelos bispos. Tal excesso de poder acabou por corromper, futuramente, a Igreja. Isso escandalizava o clero grego, muito mais liberal, no que diz respeito a leitura bíblica, já que se conheciam várias traduções vernáculas no mundo ortodoxo. Entretanto, a igreja ortodoxa compensava sua descentralização episcopal, com a unidade do império bizantino e sob determinados aspectos, as heresias causavam complicações teológicas e políticas sérias no mundo grego. A iconoclastia do século VIII foi um movimento herético liderado pelo imperador de Bizâncio contra as imagens. Influenciado diretamente pelos monofisistas e pelas crenças islâmicas e judaicas de repúdio a imagens, o império bizantino começou a destruir imagens de santos e proibir seus cultos. Isso levou o império a uma feroz briga entre uma parte do clero grego e romano contra os áulicos do imperador. E como não devia deixar de ser, descambou para violência, quando o Império mandou executar vários clérigos e súditos acusados de não acatarem aos caprichos imperiais. A estrutura política dos patriarcados gregos era precária, precisamente por carecer de uma unidade intrínseca, que era conjecturada somente pelo papa e pelo imperador. Com a excomunhão da Igreja Grega por Roma, em 1054, essa tendência centrífuga acabou por se fortalecer, até o ponto em que Constantinopla caiu, em 1453, destruindo um princípio de unidade política do clero grego.


A Igreja Católica Romana tinha uma situação muito mais complexa a resolver. Na verdade, uma boa parte das restrições bíblicas se deveu às heresias cátaras do século XIII, quando grupos fanáticos gnósticos começaram a apregoar doutrinas estranhas, fora do âmbito do cristianismo e da institucionalidade regular do clero. “Cátaro”, no grego, que dizer “puro”, e como partidários maniqueístas do bem e do mal, acreditavam na dissociação entre a carne e o espírito e em duas entidades divinas, Deus e Satã. Como criam que a carne era uma espécie de prisão do espírito, incentivavam o suicídio, o assassinato de mulheres grávidas e a total abstinência sexual. Negavam a autoridade dos eclesiásticos e do papa, e matavam muitos padres. E para subjugar a revolta, a Igreja teve que mover uma cruzada e o estabelecimento da Inquisição, para pacificar a região de Albi, na França, foco da heresia. No entanto, essa restrição era momentânea, variada de acordo com as tensões internas do mundo medieval. No geral, a bíblia latina era estudada, embora devesse ter o respaldo oficial e orientação da Igreja. Na prática, até o século XV, com a formação de uma elite leiga de letrados e o surgimento da imprensa, a publicação da bíblia no latim e mesmo nos originais em grego, acabou por disseminar a várias classes sociais ascendentes, que buscavam as letras. Até o advento do protestantismo, uma boa parte das classes letradas, sejam elas leigas ou eclesiásticas, viam com maus olhos a tradução da bíblia para o vernáculo. A Vulgata Latina de São Jerônimo tinha um profundo peso de tradição.


A unidade católica medieval também preservou o homem europeu de uma das maiores ameaças à sua autonomia política e sua liberdade: a expansão do islamismo. Entre os séculos de auge das cruzadas, um povo do Oriente particularmente atormentava o imaginário de ódio dos europeus cristãos medievais: os turcos. Convertidos ao islamismo, eram famosos pela truculência e pela crueldade, expandindo seus domínios sobre o Império Bizantino e mesmo sobre as possessões árabes e persas. A briga turca e cristã se iniciou quando os turcos seljúcidas (nome atribuido a seu lider, Seljuk) tomaram Jerusalém, no século XI e começaram a hostilizar os peregrinos cristãos que visitavam a Terra Santa. Os turcos profanavam os lugares santos cristãos da Palestina e saqueavam os peregrinos que visitavam a cidade de Jerusalém. Isso acarretou sentimentos hostis da Cristandade contra o Islã em geral, e os turcos, em particular. E em resposta ao apelo do imperador Alexius Comnenos, de Constantinopla, Urbano II conclamou aos cristãos se armarem contra os infiéis.

Os métodos cruéis dos turcos em relação aos dominados, eram conhecidos pelos cristãos. A execução mais comum que os invasores aplicavam aos dominados era a empalação, que consistia em enfiar uma estaca no ânus do condenado até sair pela boca. Saques, violências, escravidão e estupros acompanhavam a expansão turca, que ameaçava a Europa. Cidades da Europa Oriental eram atacadas e saqueadas e quando o sultão Maomé II tomou Constantinopla, a principal cidade da Cristandade no oriente, em 1453, causou uma profunda comoção na Europa. Com a conquista do império bizantino, o recém-formado império turco abriu as portas para o ocidente, hostilizando desde o continente até o Mediterrâneo. Muitos cristãos questionaram aos céus, o porquê da perda da grande cidade cristã do antigo império romano oriental. O impacto foi profundo e o ressentimento aumentou. No século XVI, o Império Turco atacava várias cidades do Mediterrâneo e do Leste Europeu. Guerras entre o Sacro Império e os turcos eram relativamente comuns, inclusive, no que diz respeito aos exércitos de Carlos V e seus domínios eslavos. A pirataria turca capturava navios europeus e gerenciava um comércio de escravos brancos, outrora patrocinados pelos árabes. Até o século XVIII, cerca de um milhão de europeus foram escravizados no Mediterrâneo e as mulheres brancas eram mandadas aos haréns ou aos prostíbulos.

No ano de 1571, os otomanos reuniram uma das maiores armadas que havia notícia, para atacar as cidades do sul da Itália e do Chipre e abrir as portas para a invasão da Europa pelo Mediterrâneo. Todavia, a Espanha católica, revigorada do espírito guerreiro da Reconquista e da Contra-Reforma, organizou uma Santa Liga Católica, junto com a República de Veneza, a Casa de Savóia, a Ordem de Malta, o reino de Nápoles e os Estados papais. Sob o comando do príncipe Dom João de Áustria, irmão do rei espanhol Felipe II, travou-se uma das maiores e mais ferozes batalhas navais da história: a batalha do Lepanto! Duzentos e quatorze navios cristãos enfrentaram bravamente duzentos e trinta grandes galeras turcas e esmagaram a Armada no golfo do Lepanto, na Grécia. A vitória cristã representou a completa salvação da Europa contra uma invasão otomana e selou o declínio da pirataria turca no Mediterrâneo. Mas, essa ameaça só terminou, de fato, no final do século XVII, quando os turcos, em cerco a cidade de Viena, no ano de 1682, foram derrotados pelos exércitos do Sacro Império e, pelo exercito polonês do nobre Jan Sarbierski. O Grão Vizir Kara Mustafá foi decapitado pelo sultão por ter perdido a batalha por Viena.



A obra de cavalaria de Jeanot Martorell, Tirant lo Blanc, contém sérias menções aos turcos: o personagem herói do livro, Tirant, consegue reconquistar o “império grego”, e converte todos os infiéis, na força, ao cristianismo. Em outro trecho da obra, um cavaleiro romano, núncio do papa, chega a Constantinopla e encontra o Imperador apático, diante do uso da principal Igreja Cristã da cidade, como estábulo para os cavalos (provavelmente Hagia Sofia). O nobre protesta contra a covardia do monarca, questionando o porquê de aceitar sujeitar-se aos turcos, essa “gente de pouco valor”, nas suas palavras.

Os turcos saqueavam a cidade, molestavam as mulheres e pilhavam tudo o que viam, quando entraram no templo e viram o fidalgo, junto com outros cavaleiros, rezando para o altar da Virgem Santíssima. Quando tentaram tirar o altar, o cavaleiro brandira a espada e ameaçava matar todos os que viessem a destruir a Igreja. Impressionado com a coragem do rival, o capitão turco, temeroso, acabou por ir embora e deixar a cidade, enquanto a ordem foi restaurada.

Em outro trecho da obra, um rei mouro invade o reino da Inglaterra. Quando o exército infiel é derrotado pelos cristãos, o líder das tropas, o conde e eremita Guilherme de Varoic eleva seu filho cavaleiro e, como iniciação, manda-o matar um mouro gigantesco capturado. Há uma cena bizarra no romance: o filho pega da espada e mata o mouro a duros golpes. O conde pega a cabeça de filho e o enterra nas feridas do cadáver, sujando-o de sangue. Tamanho anátema representava os islâmicos, que eram vistos como objeto de ódio pelos cavaleiros cristãos. Os turcos que o digam, na descrição do romance de Martorell. O imaginário da queda de Bizâncio é profundo em sua narrativa. Isto porque a obra foi escrita por volta de 1460, sete anos depois da conquista da cidade.

Esse imaginário refletiu na música. A canção anônima “L´homme Armée”, composta no século XV, refere-se a uma cruzada contra os turcos. Ela inspirou belas missas de um dos maiores gênios da polifonia flamenga medieval: Josquin Deprès. Não se sabe ao certo onde e quando nasceu, embora tradicionalmente afirmam ser em Hainaut, atualmente na Bélgica, em 1440. Josquin Deprèz teve sua educação inicial dentro das cortes francesas e, posteriormente, nas capelas papais. Serviu como maestro do Duque Ercole I, de Ferrara, por volta de 1503 e, fugindo de uma peste, acabou por aceitar a proteção dos príncipes franceses de Conde, como canônico da Colegiata Conde-sus-L´Éscault, falecendo nesta cidade, no dia 27 de agosto de 1521. As missas aqui expostas foram publicadas em 1502, quando de sua estada em Ferrara, pelo impressor Petrucci, e influenciaram profundamente a música renascentista.

A polifonia é uma estrutura de vozes, de tonalidades diferenciadas, que formam um conjunto musical harmônico. As primeiras polifonias foram desenvolvidas no século XI e faziam contraposição à homofonia, comum no canto gregoriano, onde somente uma voz é cantada no coral. Deprèz influenciou toda uma geração de músicos polifônicos europeus, desde Palestrina, Tomás de Victoria e Orlando de Lasso, até músicos protestantes, como o próprio Lutero. O termo “missa”, comum a esse tipo de gênero musical, expressa o sentido de liturgia da Igreja Católica e dos ritos e palavras do Canto Gregoriano: Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus, Benedictus e Agnus Dei. A presente obra expressa o espírito do cavaleiro armado, o fervor do homem medieval rezando, armado em defesa da Cristandade!
(Josquin Deprèz - Prov. 1440 - + 1521).
A Missa "L´homme Armée" - Super Voces Musicales.

Friday, February 02, 2007

Bizâncio: as portas do Império Romano no Oriente!


Para os gregos, a cidade era Bizâncio; e, posteriormente, para os romanos, era Constantinopla, ou simplesmente “cidade de Constantino”. Bizâncio era uma pequena e antiga polis, localizada no litoral do Mar Bósforo, fundada em 657 A.C., sem muita proeminência política até 330, quando o imperador de Roma, Constantino I, elevou-a a capital do Império Romano do Oriente. Na prática, a posição de Bizâncio era o portal entre a parte ocidental e oriental do Império, já que sua localização era o liame entre os domínios imperiais. Constantino batizou-a como “Nova Roma”, porém, o nome não vingou. Acabou prevalecendo o nome do imperador que a rebatizou.

No entanto, essa situação não foi totalmente pacífica. Constantino entrou para a história como o homem que cristianizou a religião do Império, e elevou a Igreja Católica como sua fé oficial, revogando, por decreto, as antigas crenças pagãs de Roma. O Édito de Milão de 313, que se passava por norma de tolerância, na prática, legalizou o cristianismo e decretou o fim do paganismo romano. Diz a lenda, que se converteu ao cristianismo, quando, na batalha de Ponte Mílvio, viu a Cruz de Cristo nos seus sonhos, com os dizeres: In Hoc Signo Vinces! (com este símbolo, vencerás!). Mandou pintar as cruzes nos escudos e teve uma esmagadora vitória em combate.

Na verdade, Constantino movia uma feroz guerra civil contra dois imperadores: Maxentius, do ocidente, e Licínio, do Oriente. Constancius, pai de Constantino, era um dos imperadores da Tetrarquia, e coexistia politicamente com outros imperadores. Era regra em vigor do Império as subdivisões governamentais criadas pelo imperador Diocleciano, que separava o Império em setores do Ocidente e Oriente. A renúncia de Diocleciano, em 305, causou uma anarquia política total do Império. Constantino ajudou a quebrar essa regra, quando usou a força contra todos os imperadores, em nome da unidade imperial. Em Ponte Mílvio selou a derrota e o fim do império de Mexentius, e em 323, Constantino mandou matar seu genro e rival Licínio, governando sozinho o Império.

Era difícil constatar se Constantino era um cristão autêntico. Sob determinados aspectos, ele era um verdadeiro pagão, manifesto na brutalidade de sua política e mesmo nas concepções religiosas pouco ortodoxas de cristianismo. Ele mesmo se autonomeava o “Apóstolo dos Apóstolos” de Cristo, e, antes de morrer, ordenou que fizessem um túmulo, em sua homenagem, colocando praticamente como de um status quase divino, próximo do próprio Jesus. Nos últimos anos da vida de Constantino, ele enfrentou séria resistência da Igreja Católica, já que o patriarca de Alexandria, Atanásio, fez duras críticas contra o que considerava muitas das heresias do imperador, que estava se alinhando aos arianos. A heresia ariana negava os atributos divinos de Cristo, e a própria Igreja, almejando a própria independência política, não tolerava a interferência do Imperador em seus assuntos teológicos e internos.

Paradoxalmente, a ascensão do cristianismo como religião do império foi um dos elementos mais profundos e marcantes da civilização ocidental. Talvez nem Constantino percebera o grau de importância ao firmar o estabelecimento oficial da Cristandade. De fato, a intenção do imperador era fortalecer a unidade do Império. Porém, ele acabou por restabelecer uma cultura religiosa revolucionária, que moldou profundamente a alma da sociedade européia.

Essa tendência de cristianização da Europa já existia bem antes de Constantino. Nos três séculos anteriores ao seu governo, o cristianismo se tornou uma das forças mais importantes do Império, e junto com ela, a Igreja. A Igreja Católica já se aprofundava no espírito da Roma bem antes de sua oficialização, em atos de caridade, perseverança, penitências, martírios e astúcia política. Havia Igrejas em toda parte do Império: Roma, Norte da África, Grécia, Palestina. O processo de conversão do povo veio das classes baixas, até chegar às elites do Império. No século IV, uma boa parte da elite do Império se considerava cristã.

Há muitas explicações para a ascensão do cristianismo em Roma: uma delas, diz respeito à visão teológica e moral do cristianismo. Ao contrário das variadas religiões, ou mesmo da religião estatal do Império, o cristianismo possuía uma explicação universalista da salvação da humanidade, uma promessa de vida eterna, uma ética humanitária, além da crença de um Deus único. A profundidade ética de seus preceitos de família e de religião, herdada do judaísmo, causara enorme impressão a muitos povos do império, em particular, os romanos.

No entanto, essa transformação espiritual nem sempre foi pacífica. Houve alguma resistência dos pagãos, inclusive, de imperadores. O imperador de Constantinopla, Juliano, odiava os cristãos. Fez tudo para persegui-los e restaurar a antiga fé pagã. Ademais, hostilizava profundamente a cidade de Bizâncio, desejando transferir sua capital para Antioquia. Porém, ele acabou morrendo, e o cristianismo, mais uma vez, voltou ao Império. Com Teodósio, general espanhol elevado a imperador, Constantinopla foi reestruturada e a ortodoxia doutrinária católica de Roma foi restaurada, tanto contra as heresias, como contra o paganismo.

Com a queda do Império Romano do Ocidente, a posição de Bizâncio se consolidou politicamente. Constantinopla, com a queda de Roma, acabou por consolidar, de forma política, como herdeira da cultura imperial. De fato, herdaram várias possessões ao norte da África, uma parte do Oriente Médio e da Grécia. A capital imperial do oriente era uma das mais cosmopolitas que se tinha notícia. Embora os bizantinos falassem, pensassem e rezassem em grego, consideravam-se romanos, herdeiros das tradições imperiais. Enquanto o papado da Igreja ficava na Europa Ocidental, guardando a velha tradição eclesiástica do bispo de Roma, Bizâncio representava a força militar que restou do império.

O auge do reinado de Bizâncio de caracterizou pela ascensão de Justiniano, que reinou de 527 a 565. Foi um governo de expansão política do império e de muita conturbação social. Justianiano moveu guerras contra os godos da Itália e esmagou o reino dos Vândalos, ao norte da África. O seu exército, sob a liderança do general Belisário, conquistou o sul da Itália, e a cidade de Roma, sob domínio godo, acabou por se sujeitar politicamente ao imperador. O papa foi rebaixado a um duque do império, obrigado a pagar tributos ao imperador. A cidade de Ravena, junto com a Sicília, também foi anexada como parte do Império.

Justiniano, através de um ideal político autocrático, criou uma enorme burocracia política e sujeitou a Igreja sob seu comando. Isso não impediu a revolta de Nika, em 532, quando a população, revoltada com os altíssimos impostos, acabou por se sublevar. Facções internas do império tomaram a cidade, massacrando a guarda real, e destronando Justiniano. Porém, quando o imperador iria fugir, sua esposa, a imperatriz Teodora, convenceu-o a resistir à revolta. Teodora tinha uma história obscura: antes de ser imperatriz, era uma dançarina de prostíbulo. Todavia, ela mostrava ser de uma profunda personalidade e sabia valer, talvez, mais do que o imperador, a liturgia do cargo. Suas palavras foram de profunda firmeza:

"Ainda mesmo que a fuga seja a única salvação, não fugirei, pois aqueles que usam a coroa não devem sobreviver à sua perda. Se queres fugir, César, foge; eu ficarei, pois a púrpura é uma bela mortalha." Com a ajuda do leal general Belisário, a revolta foi esmagada e trinta mil rebeldes foram executados. Com a pacificação do reino, Justiniano consolidou seu poder pessoal.


Justiniano também legou à civilização, dois grandes monumentos do mundo ocidental: uma, foi a Igreja de Santa Sofia, gigantesco templo e verdadeira obra-prima arquitetônica. A arquitetura do templo de “Hagia Sophia” é tão magnífico, que a “arte bizantina” se confunde com a Igreja construída pelo imperador. E outra, foi o que, modernamente, chamou-se Corpus Juris Civilis, verdadeiro compêndio jurídico de todo o direito romano. Na verdade, o termo foi criado no século XVI, pelo jurista francês Denis Godefroy, para dar nome a uma das maiores relíquias jurídicas do mundo antigo e medieval. Em 528, Justiniano nomeou dez juristas para elaborar um projeto legal, reescrevendo jurisdições de vários imperadores anteriores. Em 529, surgiu o Codex de Justiniano. Em 530, o imperador reuniu uma nova comissão de dezesseis juristas, para compilar a doutrina, leis e jurisprudência histórica romana. Desse estudo jurídico, que vai das leis da república romana até o império, surgiu os Pandectas,ou Digestas, envolvendo cerca de 40 juristas clássicos romanos. Em 533, os juristas condensaram a obra num manual didático para a Escola de Direito de Constantinopla e o resultado foram as Institutas de Justiniano. Em 534, cinco juristas se reuniram para reformular as leis de 529, e acabaram por institucionalizar um novo código, ou o Codex Repetitae Praeletiones. A influência bizantina nas jurisdições modernas é sentida até hoje, quando uma boa parte do Direito Civil atual deve sua estrutura às compilações justinianas.

Grande parte da cultura filosófica grega foi guardada por Bizâncio. Ao contrário do mundo europeu ocidental, no império havia várias escolas leigas, que guardavam e difundiam a filosofia e a tradição literária grega. Tal acervo foi posteriormente essencial para o contato com a literatura grega pelo mundo europeu latino, a partir do fim da Idade Média. Até o mundo árabe absorveu uma boa parte da tradição filosófica grega, através das terras conquistadas de Bizâncio. Quando as obras gregas chegaram na Itália, a partir dos séculos XIII e XIV, elas revolucionaram os estudos de humanidades, quando escolas de grego foram fundadas nas cidades italianas. Posteriormente, com o surgimento da imprensa, essas obras foram rapidamente conhecidas pelo mundo erudito europeu e influenciaram profundamente a Renascença.


Bizâncio também fez parte do processo civilizatório do mundo cristão europeu. A cristianização da Europa Oriental, em particular, dos eslavos, se deu sob o patrocínio dos monges do império bizantino. No século IX, inicia-se o processo de conversão das nações eslavas. Metódio e Cirilo, irmãos e, no caso do último, monge, foram os primeiros missionários cristãos no mundo eslavo. Foi a partir de Cirilo que se criou o alfabeto de quase todas as línguas eslavas, como o russo, ucraniano, búlgaro, sérvio, entre outros. Os chamados alfabetos cirílico e o glagolítico, foram introduzidos nas línguas eslavas, através de traduções de livros litúrgicos e religiosos da Igreja Grega. Na prática, uma boa parte do alfabeto eslavo provinha da Grécia, em específico, da região da Macedônia, terra de origem do monge Cirilo.

A Rússia se converteu a partir do século X, quando uma princesa russa, no ano de 957, acabou por se converter e batizar-se na Igreja de Hagia Sophia, em Constantinopla. Olga, viúva do príncipe de Kiev, Igor I Rurikovich, acabou por patrocinar o cristianismo na região. Foi a primeira canonização russa da Igreja Ortodoxa, sendo a mesma, elevada como Santa Olga de Pskov. São encontrados no antigo reinado de Kiev, na Ucrânia, bispos gregos sujeitos à Igreja de Constantinopla e que eram consagrados pelo Patriarca Ecumênico. A Igreja Ortodoxa Russa, no início, era ligada a Santa Sé Apostólica de Constantinopla. Só a partir do século XVI é que se iniciou a separação da Igreja Ortodoxa Russa com a administração grega, quando o império russo começou a se consolidar, na figura da autocracia czarista. De fato, as influências do império romano do oriente foram tão profundas na Rússia, que o termo “czar” provém da antiga denominação romana dos imperadores: césares! Outro aspecto de profunda influência de Bizâncio sobre o mundo eslavo, são as músicas religiosas da Igreja Ortodoxa. Grande parte das composições russas, sérvias, ucranianas, tivera profunda influência de Constantinopla. Um detalhe que será comentado mais à frente!


A chamada “Igreja Ortodoxa” até o cisma de 1054, não se considerava fora da influência da Igreja Católica Romana. Embora houvesse uma unidade administrativa, havia um sério conflito cultural, político e teológico nas duas Igrejas. A Igreja Romana, zelosa de uma pureza doutrinária e de uma uniformização da fé religiosa, não se coadunava com as práticas de sua sucursal grega, muitas vezes afeita a conflitos teológicos incansáveis. Um exemplo clássico foi quando Metódio e Cirilo foram a Roma pedir apoio do papa, a respeito de converter a população eslava, sob o patrocínio do Vaticano. O papa deu carta branca para converter a população, adotando o eslavônio na missa católica. No entanto, setores mais intransigentes na Igreja Católica, junto com o apoio do reino carolíngio, não permitiram a renúncia do latim como língua litúrgica, e Metódio acabou sendo preso pelos partidários francos. Quando liberto, Metódio acabou aderindo às diretrizes da Igreja Grega.

Há outras histórias que conflitavam com os latinos. O imperador Leão III Isáurico, no século VIII, desencadeou uma feroz revolta contra as imagens religiosas. Influenciado pelas heresias monofisistas e mesmo pelo credo islâmico e judaico, no ano de 724, o monarca mandou destruir todas as imagens dos templos de Constantinopla e de seu império. A ressurreição do monofisismo, que era uma doutrina relativamente comum entre os cristãos do Egito e na Síria, não aceitava a doutrina da Santíssima Trindade. Cristo só tinha uma natureza, a divina. E essa heresia deu incremento para que muitos cristãos egípcios e sírios se convertessem ao islamismo, já que a teoria da unicidade divina casava com muitos aspectos da tradição judaica, e, posteriormente, muçulmana.

O papa Gregório II, no Concilio Romano de 731, condenou a iconoclastia do imperador e de seus blasfemadores, tida por herética. E mesmo os bispos gregos apoiaram a declaração papal. Até o povo reagiu à destruição das imagens religiosas e das relíquias, tornando as atitudes imperiais bastante impopulares. Constantino V, filho de Leão, continuou o processo de iconoclastia, perseguindo e executando todos àqueles que cultuassem imagens e criando vários mártires religiosos. São Teodoro Estudita, eclesiástico grego e ferrenho inimigo dos iconoclastas, exorta o papado como a última opinião nos artigos de fé. No Concilio Ecumênico de Nicéia, em 789, ele exorta a importância do Santo Sudário, símbolo sagrado do cristianismo, como refutação a iconoclastia. Em 843, a prática de destruição de imagens foi totalmente abandonada. O fim da iconoclastia restaurou um sólido acervo cultural e artístico religioso, inspirado na fé cristã. Os mosaicos, ícones e as cenas iconográficas da vida dos Santos e do Próprio Cristo, além de Virgem Santissima, são os elementos mais marcantes da arte bizantina. Tais modelos influenciaram profundamente as artes no mundo ocidental e oriental. Desde uma pintura italiana de Cimabue, os mosaicos de Cristo Pantokrátor (criador do mundo) da Igreja de Ravena ou até um retrato da Theotokós (mãe de Deus) em uma igreja ortodoxa, encontramos resquícios dessa rica tradição visual.

Outro aspecto implicava a natureza política entre as duas Igrejas. Enquanto a Igreja Romana consagrava a independência e supremacia total da autoridade eclesiástica, a Igreja Grega era partidária da sujeição do clero ao imperador, como príncipe-sacerdote e autoridade máxima. A resistência romana foi sentida, quando, a partir do século VII, o papa, como duque do império, rebelou-se contra os tributos e recusou-se a obedecer a Constantinopla. No ano 800, a Igreja de Roma elevou Carlos Magno a Sacro Imperador Romano Germânico do Ocidente. Roma buscava uma força militar leal, que pudesse contrapor à hegemonia do Império de Bizâncio. E na monarquia carolíngia encontrou um povo profundamente fiel à doutrina católica romana.

O papa, a partir de então, se referia a Bizâncio como “império dos gregos”. Isso feriu os sentimentos bizantinos, já que os gregos se consideravam herdeiros de Roma e nutriam uma teologia em que colocava seu imperador, dentro de uma ordem semidivina. O Imperador era a representação legítima do legado romano cristão, era o vice-regente de Deus na Terra e todo o Império caminhava para o centro de sua autocracia. Porém, não era isso que concordava o Vaticano. O papado encarnava a idéia agostiniana de que o bispado de Roma era a autoridade suprema para a Fé Cristã. “Roma locuta, causa finita”, “Roma falou, causa cessou”, já dizia Santo Agostinho! E “nula salus extra ecclesiam”, “não há salvação fora da Igreja”, afirmava Ambrósio de Milão. Quando o papado coroou Oto I, como imperador do Sacro Império Romano Germânico, e o identificou em suas credenciais como “imperador augusto dos romanos”, eis que um bizantino comentou, ultrajado: “a audácia daquilo, chamar o imperador universal dos romanos, o único Nicéforo, o grande, o augusto, de ‘imperador dos gregos’, e designar uma pobre criatura bárbara como ‘imperador dos romanos’! Ó céus! Ò terra! Ó mar! O que devemos fazer com tais canalhas e criminosos?”.

A dissidência política e religiosa chegou ao auge no ano de 1054, por causa de uma quizília teológica entre a Igreja Romana e a Igreja Grega. O acréscimo do “filioque”, ou seja, a de que o Espírito Santo procedia do Pai e do Filho, não era bem aceita pelos gregos, que julgavam que o trecho fora adaptado de forma incorreta, pelo Concilio de Toledo, de 589. A tese era aparentemente simples, mas que causava complexas discussões teológicas e semânticas: os católicos romanos criam que o Espírito Santo provinha do Pai e do Filho; enquanto os gregos concebiam a idéia de que a Santíssima Trindade, originalmente, não tinha essa distinção, e que a procedência do Filho era incorreta e foi acrescida pelo Credo Romano. Tais discussões vinham de velhos debates teológicos, não totalmente resolvidos pelo Concilio de Nicéia. Em Nicéia, havia um acordo comum entre as Igrejas, que colocavam o Filho e o Espírito Santo, como fruto do Pai. No entanto, em Toledo, o Espírito Santo também foi subordinado ao Filho. E no Segundo Concilio de Nicéia, a teoria do “filioque” foi validada. Para alguns teólogos gregos, isso dava a entender que o Espírito Santo foi “criado” pelo Pai e pelo Filho, enquanto os romanos apenas viam um processo de individualização da Trindade, dentro de uma totalidade divina. Porém, a situação tendeu a se deteriorar, e, diante da recusa da Bizâncio em aderir a tese teológica, numa tarde de 1054, um cardeal e dois enviados do papa entraram em “Hagia Sophia” com uma bula e colocaram-na no altar do templo. Era a bula de excomunhão de toda a Igreja Grega. Um diácono implorou para que o clérigo levasse de volta o documento. Este acabou por ignorar. E o diácono jogou o documento para fora da Igreja, na rua.

O “Grande Cisma” rompeu a idéia de unidade do império grego e da Cristandade. Concomitante a esse estado caótico, Bizâncio estava experimentando os primeiros sinais de decadência. Alexius Comnenus, grande estadista, habilidoso e intrigante político, foi um imperador, que apesar dos seus talentos, encontrou um Império ao meio do caos. Bizâncio viu suas terras tomadas pelos árabes no século VIII, na Palestina e ao Norte da África, e na Itália e regiões da Grécia, sofria a ameaça dos vários reinos bárbaros. Um outro povo aparece em cena, para ameaçar a soberania bizantina: os turcos.


Sob pressão e usando de artimanhas diplomáticas, no ano de 1095, Alexius, em nome da velha solidariedade cristã, pede ajuda ao papa Urbano II, para que se conclame exércitos cristãos em socorro ao velho império. O papa conclamou a cristandade ao combate, no Concilio de Clermont, e no ano de 1096, quando o imperador esperava uma tropa de mercenários para lutar contra os turcos, viu uma legião de mendigos e camponeses fanáticos, prontos a ameaçarem a paz de Constantinopla. Liderados pelo monge francês Pedro, o Eremita, a turba mata e saqueia tudo que vê pela frente: comunidades judaicas não são poupadas e os islâmicos também são massacrados. Sobre as portas da cidade bizantina, Comnenus recusara-se a abri-las ao pequeno exército de Pedro e o insuflou a lutar contra os infiéis. Despreparada e sem nenhuma experiência militar, a cruzada do eremita é massacrada pelos turcos.

O papa, chocado com a leva de fanáticos que iam para a Terra Santa, preconiza a seleção de cavaleiros nobres para a primeira grande cruzada. Liderados por Geofrey de Boullon, o grosso da cavalaria franca pega em armas e chega às portas do império grego. Quando estes chegam a Constantinopla, o imperador, astuciosamente, promete-lhes mantimentos, sob a condição de reconquistarem algumas cidades da Palestina. Feito isto, quando alguns cruzados retomam algumas cidades dos islâmicos, Alexius manda levantar as bandeiras bizantinas, a revelia dos cruzados, que ficam furiosos. Comnenus, mais uma vez, os empurra até a Palestina, quando os francos tomam Jerusalém dos muçulmanos. O imperador consegue expandir seu império decadente, explorando as relações diplomáticas contra seus aliados e inimigos.

Contudo, mais um século depois, a quarta cruzada de 1202 é exortada, em nome de reconquistar a Terra Santa, perdida em 1187, para Saladino. Entretanto, o que seria uma cruzada religiosa, acabou por ser uma monstruosa expedição de banditismo e terror. Os cruzados, bancados pelo Doge Dândolo, de Veneza, foram estimulados a saquearem cidades cristãs bizantinas, a fim de patrocinar pilhagens. Coincidentemente, um dissidente do imperador de Constantinopla, que disputava o poder, acabou por se aliar aos cruzados, que, com promessas de dinheiro, o elevariam como imperador. O papa, sabendo dessas histórias, impôs a excomunhão para quem atacasse cidades cristãs. Mas foi inútil. Constantinopla fora atacada e o rebelde foi elevado a Imperador, sob o nome de Aleixo IV, expulsando o antigo governante.

Porém, o imperador impôs uma pesada tributação sobre a população, para pagar os mercenários cruzados, o que ocasionou uma feroz rebelião. Um parente afastado de Alexius IV liderou um golpe de estado e o matou, declarando-se como imperador Alexius V. Os cruzados não se contentaram, e, em 1204, percebendo sua força militar, saquearam a cidade por três dias. Livros, relíquias sagradas, ícones, foram totalmente destruídos. Na catedral de Hagia Sofia, as tapeçarias foram rasgadas e os soldados beberam todo o vinho da Sacristia. A população não foi poupada do caos: freiras foram estupradas e súditos assassinados cruelmente. O saque de Constantinopla foi tão terrível, tão devastador, que a cidade nunca mais se recuperou da tragédia. O império foi fragmentado em três dinastias e só foi unificado em 1261, com a reconquista de Constantinopla pela dinastia dos imperadores Paleólogos.

Mas o Império Bizantino, no século XIV, era apenas uma sombra do seu legado. Depois de vários cercos sobre o império, nos anos 1391, 1402 e 1423, os turcos não se intimidam e querem expandir seu império. Em 1452, um grande sultão, chamado Maomé II, prepara a última investida sobre a cidade de Constantino. Bizâncio possuía uma arma, cuja utilidade causava sérios danos ao inimigo: o chamado “fogo grego”, uma granada feita de componentes químicos desconhecidos, que causava grandes estragos nas tropas inimigas, uma vez que o fogo gerado não se apagava com a água. Aliás, dizia-se que quando mais se jogava água contra o “fogo grego”, mais aumentava a intensidade do fogo. No entanto, Maomé II desenvolveu uma tecnologia, até então, incomum para a época: os canhões! Urbano, um engenheiro húngaro cristão, oferecera sua nova tecnologia para o imperador Constantino XI. O imperador recusou seus serviços, por causa do preço da arma. Então, o engenheiro ofereceu a tecnologia ao sultão, que aceitou de pronto. Uma ironia da história poderia ter selado o destino de Constantinopla.

A guerra começou, quando o imperador Constantino cobrou um tributo a um príncipe otomano, prisioneiro do império. Isso foi recebido como acinte e pretexto pelo sultão Maomé II, que iniciou as hostilidades contra a capital imperial. A sensação de medo e terror dominava os súditos do império, já que a monarquia estava fragilizada e os bizantinos não conseguiam mais forças para resistir às investidas dos turcos. O estado piorou quando o sultão mandou empalar quase cem cristãos aos olhos dos bizantinos, pelas muralhas, afirmando que ocorreria o mesmo a todos os cristãos da cidade.

Os turcos cercaram a capital e intensos bombardeios de canhões fragilizavam as defesas da cidade. Os bizantinos, desesperados, pediram auxilio do papa e dos cristãos ocidentais. Navios vindos da Itália, em particular, de Veneza, ofereceram ajuda logística e militar aos bizantinos e o papa, ao fazer parte da ajuda, exigia que a Igreja de Bizâncio se unificasse a Igreja Romana, aceitando a liturgia latina e a sujeição ao papado. Muitos cristãos gregos ficaram indignados; alguns deles comentavam o seguinte: “antes os turcos nos dominassem, do que os cristãos a nos ajudar . . .”

Maus presságios dominavam a pequena e corajosa cidade grega. O clima cinzento da cidade alimentava as maiores superstições. Enquanto isso, os sinos das Igrejas de Constantinopla tocavam, para elevar o moral das tropas, cansadas, arredias. No dia 29 de maio de 1453, oitenta mil turcos atacaram cerca de quase dez mil bizantinos nas muralhas da cidade. Os portões foram abertos e os turcos mataram o maior numero de bizantinos que poderiam encontrar. Saquearam Hagia Sophia e pilharam toda a cidade. Milhares de súditos bizantinos foram escravizados e as mulheres não foram poupadas, tornadas servas sexuais dos turcos. De forma brutal, melancólica, trágica, o império bizantino foi extinto.

A perda de Bizâncio foi um duro golpe para a Cristandade. A hostilidade antiturca, comum na Europa ocidental desde o inicio das cruzadas, tornou-se uma espécie de patologia, de imaginário cultural do ódio. Os turcos eram vistos como os piores inimigos da Cristandade, depois dos islâmicos. De fato, a destruição do Império Bizantino abriu portas para a invasão turca sobre todo o Leste Europeu. E durante todo o século XVI, a Europa esteve ameaçada de ser atacada pelos turcos.

Bizâncio desapareceu, mas deixou seu legado. Desde a Igreja de Hagia Sophia, hoje, uma mesquita, até o direito, a religião, a pintura e a música, seu legado continua vivo, atuante, no aspecto maior da civilização.

A MÚSICA BIZANTINA E A TRADIÇÃO SACRA RUSSA.

A música bizantina influenciou profundamente o mundo cristão ortodoxo, no imaginário eslavo e oriental. A música sacra se tornou a voz religiosa do povo medieval da Rússia, Sérvia, Bulgária e Romênia, cujas tradições remontam às homílias, às histórias dos santos e mesmo das citações bíblicas do Evangelho. A devoção marianista, comum nas obras de arte gregas, reflete em muitos hinos de louvor a Virgem Maria. Aliás, muitos cantos vieram diretamente de suas fontes bizantinas e foram adaptadas ao mundo cultural eslavônio. Tais cantos melódicos variam da polifonia até a chamada melodias de signo russos, ou “znamenny”. No canto ortodoxo russo, que herdou com proximidade a literatura musical bizantina, há as melodias de “caminho”, ou “Putevoi”, usado nas missas, e as melodias “demestvenny”, ou de festas religiosas. As apresentações musicais aqui retratam a tradição bizantina disseminada na Europa Oriental. Acompanha também uma música turca, composta na época da tomada da cidade de Constantinopla.

(Música ortodoxa: Bizâncio – Sérvia – Rússia – Século XV- XVI- XVII)

01. És digna de Louvor (Melodia bizantina- Século XV).

02. Canção do Querubim (Melodia sérvia)

03. No sexto Mês (Melodia Russa- provavel. Século XVI).

04. O Ladrão na Cruz ( Melodia Russa- provavel. Século XVI).

05. O Prelado entrou na Igreja (Nikolay Diletsky –século XVII).
(Turquia- Século XV)