Tuesday, March 13, 2007

História Trágico-Marítima de Portugal I: Memórias do Império Marítimo Português.

Dizem que nas ruas de Lisboa do século XVI, as crianças brincavam de guerras de conquistas. Os meninos, munidos de espadas de madeira, pelejavam pelas ruas, como se fossem fidalgos lutando contra os mouros, enquanto as meninas, que assistiam a tudo, fingiam chorar, tal como suas mães. Na verdade, grande parte dessas crianças era órfã de pais, sumidos nos mares “nunca dantes navegados”, nas famosas palavras de Camões, em os Lusíadas. E suas mães, pobres mulheres de luto, que esperavam os maridos no cais, sem notícias de seus esposos e amados. Quando o Rei Dom Sebastião morreu na batalha de Alcácer Quibir, em 1578, os sebastianistas fanáticos dividiam as atenções com as donzelas no porto. Daí surgiu a frase, “ficaram a ver navios. . .”

Dois séculos depois, Bernardo Gomes de Brito publica uma coletânea chamada “História Trágico-Marítima”, relatos de terríveis naufrágios dessa época de epopéia, aventura, terror e morte que foi a “Era dos Descobrimentos” (nas palavras dos próprios descobridores europeus “achamentos”). É interessante pensar que o termo “descobrir” não faria sentido no século XVI: descobre-se o que está coberto, enquanto acha-se o que é perdido.

A história marítima portuguesa do século XVI foi uma das mais épicas e fantásticas que se há notícia. Ela mistura elementos do amor, da tragédia, do conflito cultural, das guerras e mesmo o sintoma mesmo da modernidade. A epopéia marítima de Portugal relata a separação das damas lisboetas e dos cavaleiros para as águas do Mar Tenebroso, dos imensos oceanos e suas frágeis naus, para descobrirem novos mundos ou morrerem na travessia. Retrata também a ligação do mundo, através dos mares e das rotas comerciais, que modificaram para sempre a história da humanidade. O mundo começou a se tornar pequeno, a partir daí. . .

No entanto, a história se inicia a partir do século IX, quando o comércio europeu começa a se revigorar, a despeito de séculos de estagnação mercantil. Nas cidades, surge um grupo de pessoas livres, sem vínculos com as classes aristocráticas, que investe em comércio. Não possuidores de terra, vivem das trocas e vagam por vilas e castelos, para vender suas mercadorias. Na prática, eram pequenos feirantes, excluídos das terras senhoriais, que faziam a vida nas cidades, transferindo mercadorias e serviços. Os mercadores, apesar de se locomoverem livremente, fincavam pontos comerciais onde poderiam ser encontrados ou fixassem moradia. Tais cidades onde viviam eram os burgos. E seus moradores eram os burgueses. E assim surgiu a sociedade comercial.

O comércio gerou uma revolução econômica na Europa feudal. Muitos servos fugiam ou abandonavam os feudos para tentarem a vida comercial e as práticas de mercancia eram uma oportunidade de sustento para muitos que se livravam dos pesados fardos da hierarquia medieval. A escassez de terras e a difícil aquisição destas, restringia a posse de muitos à atividade agrícola. A riqueza chama àqueles que a buscam e os burgos atraíram novas levas populacionais para as cidades. O mercado cresceu, e junto com elas, os burgos comerciais, com seu fausto de liberdade e prosperidade.



Outro fenômeno marcante das cidades medievais é a busca pela prosperidade. Pode-se dizer que a burguesia reinventou a idéia de ascensão social. O propósito de ascensão social e econômica era virtualmente ignorado, senão inútil, em boa parte da Idade Média. O status de cada indivíduo da sociedade medieval era determinado pelo nascimento e pelo caráter hereditário de sua família, cuja mobilidade social era quase nula. Um nobre nascia e morria nobre, como um camponês nascia e morria camponês. E mesmo a economia agrária e de subsistência não ajudava. A ética do trabalho e da acumulação de capital foi engendrado pelo pensamento burguês das cidades, em particular, dos prósperos comerciantes. Na velha divisão social dos cavaleiros que lutam, dos monges que rezam e dos camponeses que trabalham, o burguês era uma figura anômala, excluída das complexas hierarquias do sistema feudal.

Uma característica peculiar do burgo medieval era o grau de liberdade civil. As cidades comerciais eram governadas, em sua grande parte, por assembléias, e os cargos eram eleitos pela comunidade. Quem detinha algum tipo de propriedade na cidade, poderia eleger e ser eleito. Foram as cidades burguesas medievais que fundamentaram as primeiras legislações democráticas modernas. As leis civis, as comunas parlamentaristas dos moradores da cidade, o trabalho livre e assalariado, contrastavam com os domínios senhoriais dos nobres e reis da época. Perspectiva de vida melhor e liberdade civil era o melhor emblema dos burgos. Um provérbio medieval refletia esse espírito: “stadtluft macht Frei”, “o ar das cidades nos torna mais livres”. E, se for observado por uma ótica moderna, no êxodo rural para as cidades, qualquer camponês parece respirar essa liberdade que as cidades acalentam, em oportunidades e melhoras de vida.


No mundo medieval, esse espírito não era diferente, embora o processo desse êxodo fosse muito lento, gradual e durasse séculos. Se os bispados da Igreja evitaram a extinção das cidades medievais, o comércio acabou por reforçá-la. Embora elas crescessem em matéria de população, o número de habitantes continuava muito pequeno em comparação ao campo. Na verdade, as cidades medievais, apesar de ricas, eram muito desconfortáveis. As casas eram apertadas e as feiras muito sujas. O excesso de residências apertadas e justapostas umas a outras e seus telhados altos acabavam por escurecer internamente as ruas. Na verdade, as ruas eram verdadeiras vielas lamacentas e cheias de sujeira. Não havia calçadas e, no geral, a largura das vielas era do tamanho do ombro das pessoas. Era comum que elas se esbarrassem nas paredes e ficassem cheias de hematomas. Não havia esgoto: fezes, urinas, restos de comida, eram simplesmente jogados na rua e os ratos e baratas conviviam abertamente com os moradores. As muralhas dos burgos tornavam o clima interno ainda mais insuportável. Os setores comerciais eram divididos em cada rua ou passarela. Havia a “rua do Peixeiro”, a “rua do moleiro”, a “rua do tecelão”, cada bairro ou trajeto da cidade representando a prática de um ofício. Quando a cidade crescia além da muralha, era comum o complexo de casas se misturar com as defesas da cidade. Na melhor das hipóteses, construíam novas muralhas, para defender os novos moderadores. Porém, tal situação poderia ser considerada um certo luxo, se comparada à vida no campo, que não era menor pior.

Os camponeses, em geral, viviam em choupanas fedidas. Eram imundos e encardidos e dizia-se, parecia que a sujeira era o estado natural deles. Grande parte dos camponeses era tão pobre, que só viviam para trabalhar e comer. As roupas eram tão escassas, que muitos deles trabalhavam praticamente nus no verão, pra economizar as roupas no inverno. Conheciam momentos de fartura, quando as colheitas eram boas, mas a fome era uma regra comum. O cotidiano nessas vilas era parado, quase estático, e por séculos, era comum gerações conviverem com o mesmo estilo de vida de seus avós ou bisavós. Mesmo as mudanças eram sentidas muito lentamente nas cidades, que eram sonolentas. O mais estranho, contudo, é que uma boa parte dessas vilas camponesas não tinha nomes. Era perfeitamente possível que um camponês pudesse se perder de sua vila, se saísse do lugar. Ademais, nem mesmo as famílias camponesas possuíam sobrenome, privilégio das famílias aristocráticas. Uma boa parte dos europeus medievais só se conhecia pelo primeiro nome, ou, quando havia nomes idênticos, faziam distinções pelo nome do lugar, do oficio ou de uma característica física ou psicológica. Era possível identificar um camponês por “João do Lago”, ou “Luis Peixeiro”. Ou até “Pedro Feio”. Alguns patronímicos de plebeus ligavam-no às cidades de origem, como “Jean de Avignon”, “Manuel Lisboa”, ou mesmo os próprios sobrenomes aristocráticos da nobreza. Os plebeus da Europa, em particular, nos países católicos, só começaram a usar patronímicos registrados, a partir do século XVI, no Concílio de Trento.

A grande maioria dos camponeses residia em vilas isoladas, cujo contato com outros povoados era quase nulo. Essas vilas, muitas vezes, não contavam cem pessoas. As estradas eram íngremes e os salteadores e bandidos atacavam sob o menor descuido. Aliás, a informação, em geral, não circulava, já que imprensa não existia. Alguns fatos da história européia, como a mudança de papas e morte de reis, poderiam passar anos, sem que os habitantes camponeses da vila soubessem.

Havia mais gente dispersa nas florestas fechadas, matas e campos da Espanha, França, Itália, Alemanha e Polônia do que em qualquer cidade medieval. No final do século XV, cerca de 90% da população européia vivia no meio rural. Isso significava cerca de setenta milhões de pessoas que só viviam no campo, em aldeias e vilas pequenas perto das propriedades senhoriais. As cidades mais populosas da Europa não passavam de cem mil habitantes. A Itália, que no século XVI, contabilizava cerca de treze milhões de habitantes, e, portanto, era o país mais denso da Europa, suas cidades mais populosas, Nápoles e Veneza, contabilizavam, cada uma, cento e cinqüenta mil habitantes. O mesmo número populacional contabilizava Paris, na França, o país mais populoso da Europa, com quinze milhões de habitantes. Na verdade, as cidades mais populosas eram também as mais comercialmente prósperas. Tal facilidade se dava, porque algumas dessas cidades eram litorâneas ou viviam perto de rios ou estradas. Há de se lembrar que por uma boa parte da Idade Média, a maioria das estradas européias que ligavam as cidades era ainda do tempo do Império Romano.

As cidades italianas foram as pioneiras do florescimento comercial europeu. Isso é explicável porque, geograficamente, a Itália estava próxima do Mediterrâneo, tradicional via marítima para o comércio entre Europa e Ásia. Em parte, as cidades italianas se tornaram o caminho para a Terra Santa, por mar. Messina era a zona portuária para a cavalaria cruzada antes do Chipre e do Oriente Médio. Era uma cidade cosmopolita, cheia de mercadores bizantinos e árabes, tal como muitas no Mediterrâneo. Antes de ser o portal marítimo para o Mediterrâneo e a Palestina, Messina foi dominada pelos mouros, no século X. Em 1085, os normandos expulsaram os islâmicos e reconquistam a cidade. Se por um lado, a vinda de novos cavaleiros era sinal de novos clientes, por outro, as cruzadas causavam muita confusão nas cidades italianas. Multidões inteiras de mercenários vindos do norte assustavam os pobres citadinos italianos, que temiam ver seus bens roubados. Em particular, na terceira cruzada, houve uma verdadeira escaramuça entre os cruzados de Ricardo Coração de Leão e os moradores de Messina: como o alto contingente do exército inglês se encontrava nas portas da cidade, os preços dos alimentos subiram nas alturas. O rei não queria pagar o preço dos mercadores e o que se viu, no final, foi uma pequena luta, em que o próprio Ricardo cercou a cidade e ameaçava saqueá-la.

Com as rotas exploradas pelos cruzados, muitos mercadores acompanham os cavaleiros, em busca das especiarias do Oriente e, em particular, das Índias. No entanto, havia a rota terrestre, que ia da Alemanha até o Leste Europeu, chegando a Constantinopla. Foi por este caminho que a chamada “cruzada popular”, do fanático Pedro, o “eremita”, chegou à capital do Império Bizantino, em 1095. Quase dois séculos depois, no século XIII, essas rotas formaram novos empórios comerciais medievais entre os quais, na Alemanha, Flandes e Holanda, indo até a Escandinávia: a chamada Hansa Hanseática. A Hansa era um emaranhado de setenta cidadelas comerciais, que importava mercadorias do Oriente e as revendiam para toda a Europa central e do Norte. As suas principais cidades, Lübeck, Bremen e Hamburgo, organizavam essa liga multinacional de burgos. Sua intenção era proteger as cidades comerciais e as rotas da pirataria e mesmo de novos concorrentes.

Interessante perceber que o conceito moderno de “livre mercado” não era um fato na Idade Média. O comércio era visto dentro de um prisma corporativista, tal como as relações em geral, da sociedade medieval. As guildas e associações de oficio dos burgos visavam proteger os comerciantes associados contra os competidores rivais. Até as rotas se tornavam monopólicas: como a atividade comercial era uma concessão pública de um monarca e as rotas, um caso de conquista militar, as cidades comerciais, por vezes, entravam em guerras entre si. Na Itália, as cidades de Pisa, Genova e Veneza estavam em constante guerra pela disputa das rotas comerciais do Oriente. Por vezes, as cidades de Genova e Veneza financiavam as guerras internas do próprio Império de Constantinopla, disputando os pontos comerciais. Em 1204, Veneza conquistou seu passe livre para comercializar com o Oriente, depois que seus mercenários saquearam a cidade de Constantinopla e promoveram seu imperador. Em 1261, a dinastia dos Paleólogos conquista a cidade e o império expulsa os venezianos, promovendo seus aliados genoveses, que financiaram seu exército. Os pisanos e os florentinos ficaram de fora dessas rotas. Até os alemães sentiam a dificuldade do lidar com o preço das mercadorias, já que uma boa parte das vias do oriente estavam controladas pelas duas cidades italianas rivais. Genova e Veneza tinham primazia do comércio europeu, nos séculos XIII, XIV e XV, por uma seguinte razão: as duas cidades sabiam explorar as relações diplomáticas com o Império Bizantino e mesmo os rivais árabes e turcos. Se as rotas comerciais ficassem nas mãos de duas cidades, o mercado europeu poderia ser estrangulado pelos preços altos.


A epopéia portuguesa e a crise das cidades italianas.


Novas nações começaram a surgir no horizonte da sociedade medieval: diz respeito às monarquias nacionais, em particular, Portugal, a primeira nação-estado, de fato, a existir na Europa. A necessidade de usar as rotas marítimas dos venezianos e genoveses encontrava sérias dificuldades políticas e militares. A localização de Portugal, como o país mais afastado da Europa, não ajudava no trajeto para o oriente. Por outro lado, além das complicações militares com uma caríssima guerra contra os italianos e mesmo os turcos no Mar Mediterrâneo, havia o problema dos atravessadores árabes e hindus que transportavam as especiarias das Índias. Os comerciantes holandeses, franceses, espanhóis e mesmo os portugueses, poderiam fazer sociedades com os italianos, como de fato, existia. A dificuldade, contudo, é que o comércio da Europa ficava a mercê deles!

As mercadorias das Índias, para chegarem aos entrepostos comerciais do Ocidente, possuíam três rotas orientais: caravanas saíam da Índia, passando pelo norte da China e pela Ásia central e Oriente Médio, chegando até o Mar Negro; outras duas vias eram marítimas: navios árabes viajavam pelo Oceano Índico, passavam pela Península Arábica e subiam o Mar Vermelho, chegando a Gaza, na Palestina, ou a Alexandria, no Egito. Ou então, subiam o Golfo Pérsico até o Norte da África. O comércio das especiarias era muito lucrativo, compensando os enormes prejuízos dos investimentos em navios e mesmo em pagamento de transportes. Porém, as rotas eram difíceis e os riscos de investimento, altíssimos. Para sair da Índia e chegar à primeira feitoria italiana em alguma cidade da Grécia ou da Palestina, as mercadorias passavam por uma dezena de atravessadores. Mesmo os italianos estavam à mercê das tendências políticas e caprichos dos mongóis, turcos e os próprios bizantinos. E pagavam caro pela instabilidade. A queda de Constantinopla, em 1453, abalou as relações comerciais entre Oriente e Ocidente, já que os laços que uniam as cidades italianas ao império bizantino foram extintas. Os turcos hostis fecharam a entrada da Ásia e ameaçavam se expandir pelo Mediterrâneo, dificultando mais ainda as rotas comerciais para a Europa. Só a República de Veneza conseguiu ainda preservar velhas alianças com os árabes. É neste ínterim que entra o legado português na expansão do comércio e na abertura da Europa.

Antes da Revolução de Avis, em 1385, quando Portugal elevou Dom João I a rei, a nação lusitana já tinha uma longa tradição comercial e marítima, em parte, financiada pelos judeus do reino. A burguesia lisboeta, cristã ou judaica, tinha laços fortíssimos com os entrepostos comerciais ao norte da África e faziam sociedade, ora com os genoveses, ora com os venezianos, pela primazia das rotas comerciais. São conhecidas bancas comerciais portuguesas na Hansa Hanseática, uma vez que traziam mercadorias de Lisboa ou mesmo das cidades italianas de Genova e Veneza. No final do século XIV, o reino português fazia acordos comerciais com Genova, Veneza, Florença e Pisa, e transformava os banqueiros dessas cidades em sócios das bancas portuguesas. Grandes somas de investimentos europeus vão para Lisboa, uma das cidades que mais cresciam na Europa desde então.


Aliás, Portugal conseguiu unir o que havia melhor de tecnologia náutica daquela época, desde então. Com a ascensão do Mestre de Avis como rei de Portugal, grandes matemáticos e físicos cristãos e judeus eram largamente financiados pela monarquia e pelos mercadores portugueses. Instrumentos de origem árabe, como o astrolábio, o balestrilha, e estudos de astrologia e astronomia islâmicos e judeus eram fartamente conhecidos pelos estudiosos portugueses, que começaram a idealizar, a partir da tecnologia, o poderio que incrementaria o Império Lusitano. Já era tradição a construção de estaleiros para navios e os conhecimentos e engenharia náutica eram trazidos por navegadores mouros do Norte da África e engenheiros de várias partes da Europa. A idéia central era só uma: descobrir uma nova rota para as Índias. E o desafio principal era enfrentar o desconhecido Oceano Atlântico, o Mar Tenebroso, temido pelos portugueses. A expansão já começa no início do século XV, quando os lusitanos, depois de uma feroz batalha, conquistam a cidade de Ceuta, ao norte da África, em 1415. A intenção de tomar a cidade islâmica era no sentido de conquistar o comércio local africano e expandir a influência militar pelo Mediterrâneo, garantindo uma rota protegida de piratas mouros.

Um homem, contudo, acabou por incrementar uma revolução que modificaria para sempre Portugal. O Infante Dom Henrique, cavaleiro, guerreiro, filho da inglesa Filipa de Lancaster e herdeiro da tradição dos templários, na Ordem Militar de Cristo, idealizou uma sociedade de sábios astrólogos, astrônomos, matemáticos, físicos e engenheiros, dispostos a reinventar a náutica portuguesa: a Escola de Sagres. Investindo grandes somas da própria ordem na qual pertencia, o infante consegue modernizar a marinha portuguesa. Dizia-se que Henrique não somente herdou o físico da mãe loira e alta, como também seus gostos. Filipa de Lancaster era grande financiadora de conhecimentos náuticos, e afirma-se que o próprio poeta Geofrey Chaucer fez estudos a respeito, em nome dela.

A tecnologia náutica portuguesa do século XV acabou por se tornar uma espécie de segredo de Estado da coroa. Havia leis severas contra a venda ou mesmo a transferência de segredos náuticos para outras coroas rivais ou inimigas. Dizem que os reis portugueses puniam os espiões ou mesmo os traidores, costurando a boca deles. Mesmo as rotas marítimas, sendo desconhecidas por uma boa parte do mundo europeu, faziam parte dos segredos de Estado da monarquia e de seus investidores comerciantes e cientistas.

Há de se reconhecer também a bravura dos navegadores do século XV. Eram homens intrépidos, corajosos até a demência e se depararam com situações inimagináveis, pois enfrentavam mares desconhecidos e mares revoltos. Isso levou o sucesso do navegador Gil Eanes, que conseguiu ultrapassar o Cabo Bojador, na costa da Saara Ocidental, em 1434. O Bojador, até o século XV, era a fronteira última do europeu com o Mar Atlântico. Muitos mitos foram alimentados nessa perigosa travessia, já que uma boa parte dos navios que tentaram enfrentá-lo, acabaram nunca mais sendo vistos. Foi também nessa época que os Açores foram colonizados e anexados ao reino português. Em 1444, os portugueses descobrem o Cabo Verde e no final, acabam ultrapassando toda a Seara Ocidental e chegam na Guiné. Dai constroem os primeiros entrepostos comerciais na costa africana. Em 1460, os portugueses chegam a Serra Leoa e mais de vinte anos depois, Diogo Cão navegou pelo Rio do Zaire e estabeleceu relações comerciais com o reino do Congo. Em 1488, finalmente os portugueses quase dão a volta sobre o sul da África. Bartolomeu Dias chega ao Cabo da Boa Esperança, mas não consegue passa-lo, apavorados que ficaram os homens de sua tripulação.

Nesse interregno, países como Espanha e França começam a se interessar pelas navegações marítimas. Em 1492, Cristóvão Colombo, representando os Reis Católicos Isabel e Fernando, consegue chegar à América. Isso criou um atrito diplomático entre Portugal e Espanha, visto que o reino português se considerava fiel proprietário da exploração do Oceano Atlântico. Tal atrito quase levou os dois reinos à guerra. Espanha e Portugal já tinham assinado acordos, como o Tratado de Toledo, de 1480, que dava primazia para o reino português explorar com exclusividade as terras ao sul das Canárias. Todavia, a bula Inter coetera, assinada no dia 4 de maio de 1493, pelo papa espanhol Alexandre VI, estabeleceu a divisão do Atlântico entre ocidente e oriente, sendo que a linha demarcatória se localizaria a 100 léguas da Ilha de Cabo Verde. A Espanha tinha fincado posse nas América e exigia seus direitos de possessão sobre o território. Mas os embaixadores portugueses não admitiram a bula papal, porque sabiam que a faixa determinada pelo papa só lhes daria águas, ao invés de terras. Novas deliberações foram feitas, terminando no Tratado de Tordesilhas, assinado na data do dia 7 de julho de 1494, que determinava a divisão do oceano a 370 léguas da Ilha de Cabo Verde. Muito se discute a respeito das intenções portuguesas ao recusar a bula papal. Acredita-se que Portugal, embora não tivesse mandado expedições para explorar o território, sabia da existência delas, e pressionou a Espanha para um novo tratado. Isso garantiu aos portugueses toda a costa leste do Brasil e criou precedentes para o seu descobrimento e colonização.

Portugal construiu os caminhos para sua ascensão como potencia marítima, comercial e militar. No final do século XV, o reino poderia incrementar uma das epopéias mais desafiadoras que se há noticia: a tão sonhada rota para as Índias e a criação de um império comercial mundial. E no final, Lisboa se tornou a capital do mundo europeu. A continuação dessa história, contaremos em outra postagem.
(Cancioneiro de Elvas -Século XVI).

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