Friday, February 02, 2007

Bizâncio: as portas do Império Romano no Oriente!


Para os gregos, a cidade era Bizâncio; e, posteriormente, para os romanos, era Constantinopla, ou simplesmente “cidade de Constantino”. Bizâncio era uma pequena e antiga polis, localizada no litoral do Mar Bósforo, fundada em 657 A.C., sem muita proeminência política até 330, quando o imperador de Roma, Constantino I, elevou-a a capital do Império Romano do Oriente. Na prática, a posição de Bizâncio era o portal entre a parte ocidental e oriental do Império, já que sua localização era o liame entre os domínios imperiais. Constantino batizou-a como “Nova Roma”, porém, o nome não vingou. Acabou prevalecendo o nome do imperador que a rebatizou.

No entanto, essa situação não foi totalmente pacífica. Constantino entrou para a história como o homem que cristianizou a religião do Império, e elevou a Igreja Católica como sua fé oficial, revogando, por decreto, as antigas crenças pagãs de Roma. O Édito de Milão de 313, que se passava por norma de tolerância, na prática, legalizou o cristianismo e decretou o fim do paganismo romano. Diz a lenda, que se converteu ao cristianismo, quando, na batalha de Ponte Mílvio, viu a Cruz de Cristo nos seus sonhos, com os dizeres: In Hoc Signo Vinces! (com este símbolo, vencerás!). Mandou pintar as cruzes nos escudos e teve uma esmagadora vitória em combate.

Na verdade, Constantino movia uma feroz guerra civil contra dois imperadores: Maxentius, do ocidente, e Licínio, do Oriente. Constancius, pai de Constantino, era um dos imperadores da Tetrarquia, e coexistia politicamente com outros imperadores. Era regra em vigor do Império as subdivisões governamentais criadas pelo imperador Diocleciano, que separava o Império em setores do Ocidente e Oriente. A renúncia de Diocleciano, em 305, causou uma anarquia política total do Império. Constantino ajudou a quebrar essa regra, quando usou a força contra todos os imperadores, em nome da unidade imperial. Em Ponte Mílvio selou a derrota e o fim do império de Mexentius, e em 323, Constantino mandou matar seu genro e rival Licínio, governando sozinho o Império.

Era difícil constatar se Constantino era um cristão autêntico. Sob determinados aspectos, ele era um verdadeiro pagão, manifesto na brutalidade de sua política e mesmo nas concepções religiosas pouco ortodoxas de cristianismo. Ele mesmo se autonomeava o “Apóstolo dos Apóstolos” de Cristo, e, antes de morrer, ordenou que fizessem um túmulo, em sua homenagem, colocando praticamente como de um status quase divino, próximo do próprio Jesus. Nos últimos anos da vida de Constantino, ele enfrentou séria resistência da Igreja Católica, já que o patriarca de Alexandria, Atanásio, fez duras críticas contra o que considerava muitas das heresias do imperador, que estava se alinhando aos arianos. A heresia ariana negava os atributos divinos de Cristo, e a própria Igreja, almejando a própria independência política, não tolerava a interferência do Imperador em seus assuntos teológicos e internos.

Paradoxalmente, a ascensão do cristianismo como religião do império foi um dos elementos mais profundos e marcantes da civilização ocidental. Talvez nem Constantino percebera o grau de importância ao firmar o estabelecimento oficial da Cristandade. De fato, a intenção do imperador era fortalecer a unidade do Império. Porém, ele acabou por restabelecer uma cultura religiosa revolucionária, que moldou profundamente a alma da sociedade européia.

Essa tendência de cristianização da Europa já existia bem antes de Constantino. Nos três séculos anteriores ao seu governo, o cristianismo se tornou uma das forças mais importantes do Império, e junto com ela, a Igreja. A Igreja Católica já se aprofundava no espírito da Roma bem antes de sua oficialização, em atos de caridade, perseverança, penitências, martírios e astúcia política. Havia Igrejas em toda parte do Império: Roma, Norte da África, Grécia, Palestina. O processo de conversão do povo veio das classes baixas, até chegar às elites do Império. No século IV, uma boa parte da elite do Império se considerava cristã.

Há muitas explicações para a ascensão do cristianismo em Roma: uma delas, diz respeito à visão teológica e moral do cristianismo. Ao contrário das variadas religiões, ou mesmo da religião estatal do Império, o cristianismo possuía uma explicação universalista da salvação da humanidade, uma promessa de vida eterna, uma ética humanitária, além da crença de um Deus único. A profundidade ética de seus preceitos de família e de religião, herdada do judaísmo, causara enorme impressão a muitos povos do império, em particular, os romanos.

No entanto, essa transformação espiritual nem sempre foi pacífica. Houve alguma resistência dos pagãos, inclusive, de imperadores. O imperador de Constantinopla, Juliano, odiava os cristãos. Fez tudo para persegui-los e restaurar a antiga fé pagã. Ademais, hostilizava profundamente a cidade de Bizâncio, desejando transferir sua capital para Antioquia. Porém, ele acabou morrendo, e o cristianismo, mais uma vez, voltou ao Império. Com Teodósio, general espanhol elevado a imperador, Constantinopla foi reestruturada e a ortodoxia doutrinária católica de Roma foi restaurada, tanto contra as heresias, como contra o paganismo.

Com a queda do Império Romano do Ocidente, a posição de Bizâncio se consolidou politicamente. Constantinopla, com a queda de Roma, acabou por consolidar, de forma política, como herdeira da cultura imperial. De fato, herdaram várias possessões ao norte da África, uma parte do Oriente Médio e da Grécia. A capital imperial do oriente era uma das mais cosmopolitas que se tinha notícia. Embora os bizantinos falassem, pensassem e rezassem em grego, consideravam-se romanos, herdeiros das tradições imperiais. Enquanto o papado da Igreja ficava na Europa Ocidental, guardando a velha tradição eclesiástica do bispo de Roma, Bizâncio representava a força militar que restou do império.

O auge do reinado de Bizâncio de caracterizou pela ascensão de Justiniano, que reinou de 527 a 565. Foi um governo de expansão política do império e de muita conturbação social. Justianiano moveu guerras contra os godos da Itália e esmagou o reino dos Vândalos, ao norte da África. O seu exército, sob a liderança do general Belisário, conquistou o sul da Itália, e a cidade de Roma, sob domínio godo, acabou por se sujeitar politicamente ao imperador. O papa foi rebaixado a um duque do império, obrigado a pagar tributos ao imperador. A cidade de Ravena, junto com a Sicília, também foi anexada como parte do Império.

Justiniano, através de um ideal político autocrático, criou uma enorme burocracia política e sujeitou a Igreja sob seu comando. Isso não impediu a revolta de Nika, em 532, quando a população, revoltada com os altíssimos impostos, acabou por se sublevar. Facções internas do império tomaram a cidade, massacrando a guarda real, e destronando Justiniano. Porém, quando o imperador iria fugir, sua esposa, a imperatriz Teodora, convenceu-o a resistir à revolta. Teodora tinha uma história obscura: antes de ser imperatriz, era uma dançarina de prostíbulo. Todavia, ela mostrava ser de uma profunda personalidade e sabia valer, talvez, mais do que o imperador, a liturgia do cargo. Suas palavras foram de profunda firmeza:

"Ainda mesmo que a fuga seja a única salvação, não fugirei, pois aqueles que usam a coroa não devem sobreviver à sua perda. Se queres fugir, César, foge; eu ficarei, pois a púrpura é uma bela mortalha." Com a ajuda do leal general Belisário, a revolta foi esmagada e trinta mil rebeldes foram executados. Com a pacificação do reino, Justiniano consolidou seu poder pessoal.


Justiniano também legou à civilização, dois grandes monumentos do mundo ocidental: uma, foi a Igreja de Santa Sofia, gigantesco templo e verdadeira obra-prima arquitetônica. A arquitetura do templo de “Hagia Sophia” é tão magnífico, que a “arte bizantina” se confunde com a Igreja construída pelo imperador. E outra, foi o que, modernamente, chamou-se Corpus Juris Civilis, verdadeiro compêndio jurídico de todo o direito romano. Na verdade, o termo foi criado no século XVI, pelo jurista francês Denis Godefroy, para dar nome a uma das maiores relíquias jurídicas do mundo antigo e medieval. Em 528, Justiniano nomeou dez juristas para elaborar um projeto legal, reescrevendo jurisdições de vários imperadores anteriores. Em 529, surgiu o Codex de Justiniano. Em 530, o imperador reuniu uma nova comissão de dezesseis juristas, para compilar a doutrina, leis e jurisprudência histórica romana. Desse estudo jurídico, que vai das leis da república romana até o império, surgiu os Pandectas,ou Digestas, envolvendo cerca de 40 juristas clássicos romanos. Em 533, os juristas condensaram a obra num manual didático para a Escola de Direito de Constantinopla e o resultado foram as Institutas de Justiniano. Em 534, cinco juristas se reuniram para reformular as leis de 529, e acabaram por institucionalizar um novo código, ou o Codex Repetitae Praeletiones. A influência bizantina nas jurisdições modernas é sentida até hoje, quando uma boa parte do Direito Civil atual deve sua estrutura às compilações justinianas.

Grande parte da cultura filosófica grega foi guardada por Bizâncio. Ao contrário do mundo europeu ocidental, no império havia várias escolas leigas, que guardavam e difundiam a filosofia e a tradição literária grega. Tal acervo foi posteriormente essencial para o contato com a literatura grega pelo mundo europeu latino, a partir do fim da Idade Média. Até o mundo árabe absorveu uma boa parte da tradição filosófica grega, através das terras conquistadas de Bizâncio. Quando as obras gregas chegaram na Itália, a partir dos séculos XIII e XIV, elas revolucionaram os estudos de humanidades, quando escolas de grego foram fundadas nas cidades italianas. Posteriormente, com o surgimento da imprensa, essas obras foram rapidamente conhecidas pelo mundo erudito europeu e influenciaram profundamente a Renascença.


Bizâncio também fez parte do processo civilizatório do mundo cristão europeu. A cristianização da Europa Oriental, em particular, dos eslavos, se deu sob o patrocínio dos monges do império bizantino. No século IX, inicia-se o processo de conversão das nações eslavas. Metódio e Cirilo, irmãos e, no caso do último, monge, foram os primeiros missionários cristãos no mundo eslavo. Foi a partir de Cirilo que se criou o alfabeto de quase todas as línguas eslavas, como o russo, ucraniano, búlgaro, sérvio, entre outros. Os chamados alfabetos cirílico e o glagolítico, foram introduzidos nas línguas eslavas, através de traduções de livros litúrgicos e religiosos da Igreja Grega. Na prática, uma boa parte do alfabeto eslavo provinha da Grécia, em específico, da região da Macedônia, terra de origem do monge Cirilo.

A Rússia se converteu a partir do século X, quando uma princesa russa, no ano de 957, acabou por se converter e batizar-se na Igreja de Hagia Sophia, em Constantinopla. Olga, viúva do príncipe de Kiev, Igor I Rurikovich, acabou por patrocinar o cristianismo na região. Foi a primeira canonização russa da Igreja Ortodoxa, sendo a mesma, elevada como Santa Olga de Pskov. São encontrados no antigo reinado de Kiev, na Ucrânia, bispos gregos sujeitos à Igreja de Constantinopla e que eram consagrados pelo Patriarca Ecumênico. A Igreja Ortodoxa Russa, no início, era ligada a Santa Sé Apostólica de Constantinopla. Só a partir do século XVI é que se iniciou a separação da Igreja Ortodoxa Russa com a administração grega, quando o império russo começou a se consolidar, na figura da autocracia czarista. De fato, as influências do império romano do oriente foram tão profundas na Rússia, que o termo “czar” provém da antiga denominação romana dos imperadores: césares! Outro aspecto de profunda influência de Bizâncio sobre o mundo eslavo, são as músicas religiosas da Igreja Ortodoxa. Grande parte das composições russas, sérvias, ucranianas, tivera profunda influência de Constantinopla. Um detalhe que será comentado mais à frente!


A chamada “Igreja Ortodoxa” até o cisma de 1054, não se considerava fora da influência da Igreja Católica Romana. Embora houvesse uma unidade administrativa, havia um sério conflito cultural, político e teológico nas duas Igrejas. A Igreja Romana, zelosa de uma pureza doutrinária e de uma uniformização da fé religiosa, não se coadunava com as práticas de sua sucursal grega, muitas vezes afeita a conflitos teológicos incansáveis. Um exemplo clássico foi quando Metódio e Cirilo foram a Roma pedir apoio do papa, a respeito de converter a população eslava, sob o patrocínio do Vaticano. O papa deu carta branca para converter a população, adotando o eslavônio na missa católica. No entanto, setores mais intransigentes na Igreja Católica, junto com o apoio do reino carolíngio, não permitiram a renúncia do latim como língua litúrgica, e Metódio acabou sendo preso pelos partidários francos. Quando liberto, Metódio acabou aderindo às diretrizes da Igreja Grega.

Há outras histórias que conflitavam com os latinos. O imperador Leão III Isáurico, no século VIII, desencadeou uma feroz revolta contra as imagens religiosas. Influenciado pelas heresias monofisistas e mesmo pelo credo islâmico e judaico, no ano de 724, o monarca mandou destruir todas as imagens dos templos de Constantinopla e de seu império. A ressurreição do monofisismo, que era uma doutrina relativamente comum entre os cristãos do Egito e na Síria, não aceitava a doutrina da Santíssima Trindade. Cristo só tinha uma natureza, a divina. E essa heresia deu incremento para que muitos cristãos egípcios e sírios se convertessem ao islamismo, já que a teoria da unicidade divina casava com muitos aspectos da tradição judaica, e, posteriormente, muçulmana.

O papa Gregório II, no Concilio Romano de 731, condenou a iconoclastia do imperador e de seus blasfemadores, tida por herética. E mesmo os bispos gregos apoiaram a declaração papal. Até o povo reagiu à destruição das imagens religiosas e das relíquias, tornando as atitudes imperiais bastante impopulares. Constantino V, filho de Leão, continuou o processo de iconoclastia, perseguindo e executando todos àqueles que cultuassem imagens e criando vários mártires religiosos. São Teodoro Estudita, eclesiástico grego e ferrenho inimigo dos iconoclastas, exorta o papado como a última opinião nos artigos de fé. No Concilio Ecumênico de Nicéia, em 789, ele exorta a importância do Santo Sudário, símbolo sagrado do cristianismo, como refutação a iconoclastia. Em 843, a prática de destruição de imagens foi totalmente abandonada. O fim da iconoclastia restaurou um sólido acervo cultural e artístico religioso, inspirado na fé cristã. Os mosaicos, ícones e as cenas iconográficas da vida dos Santos e do Próprio Cristo, além de Virgem Santissima, são os elementos mais marcantes da arte bizantina. Tais modelos influenciaram profundamente as artes no mundo ocidental e oriental. Desde uma pintura italiana de Cimabue, os mosaicos de Cristo Pantokrátor (criador do mundo) da Igreja de Ravena ou até um retrato da Theotokós (mãe de Deus) em uma igreja ortodoxa, encontramos resquícios dessa rica tradição visual.

Outro aspecto implicava a natureza política entre as duas Igrejas. Enquanto a Igreja Romana consagrava a independência e supremacia total da autoridade eclesiástica, a Igreja Grega era partidária da sujeição do clero ao imperador, como príncipe-sacerdote e autoridade máxima. A resistência romana foi sentida, quando, a partir do século VII, o papa, como duque do império, rebelou-se contra os tributos e recusou-se a obedecer a Constantinopla. No ano 800, a Igreja de Roma elevou Carlos Magno a Sacro Imperador Romano Germânico do Ocidente. Roma buscava uma força militar leal, que pudesse contrapor à hegemonia do Império de Bizâncio. E na monarquia carolíngia encontrou um povo profundamente fiel à doutrina católica romana.

O papa, a partir de então, se referia a Bizâncio como “império dos gregos”. Isso feriu os sentimentos bizantinos, já que os gregos se consideravam herdeiros de Roma e nutriam uma teologia em que colocava seu imperador, dentro de uma ordem semidivina. O Imperador era a representação legítima do legado romano cristão, era o vice-regente de Deus na Terra e todo o Império caminhava para o centro de sua autocracia. Porém, não era isso que concordava o Vaticano. O papado encarnava a idéia agostiniana de que o bispado de Roma era a autoridade suprema para a Fé Cristã. “Roma locuta, causa finita”, “Roma falou, causa cessou”, já dizia Santo Agostinho! E “nula salus extra ecclesiam”, “não há salvação fora da Igreja”, afirmava Ambrósio de Milão. Quando o papado coroou Oto I, como imperador do Sacro Império Romano Germânico, e o identificou em suas credenciais como “imperador augusto dos romanos”, eis que um bizantino comentou, ultrajado: “a audácia daquilo, chamar o imperador universal dos romanos, o único Nicéforo, o grande, o augusto, de ‘imperador dos gregos’, e designar uma pobre criatura bárbara como ‘imperador dos romanos’! Ó céus! Ò terra! Ó mar! O que devemos fazer com tais canalhas e criminosos?”.

A dissidência política e religiosa chegou ao auge no ano de 1054, por causa de uma quizília teológica entre a Igreja Romana e a Igreja Grega. O acréscimo do “filioque”, ou seja, a de que o Espírito Santo procedia do Pai e do Filho, não era bem aceita pelos gregos, que julgavam que o trecho fora adaptado de forma incorreta, pelo Concilio de Toledo, de 589. A tese era aparentemente simples, mas que causava complexas discussões teológicas e semânticas: os católicos romanos criam que o Espírito Santo provinha do Pai e do Filho; enquanto os gregos concebiam a idéia de que a Santíssima Trindade, originalmente, não tinha essa distinção, e que a procedência do Filho era incorreta e foi acrescida pelo Credo Romano. Tais discussões vinham de velhos debates teológicos, não totalmente resolvidos pelo Concilio de Nicéia. Em Nicéia, havia um acordo comum entre as Igrejas, que colocavam o Filho e o Espírito Santo, como fruto do Pai. No entanto, em Toledo, o Espírito Santo também foi subordinado ao Filho. E no Segundo Concilio de Nicéia, a teoria do “filioque” foi validada. Para alguns teólogos gregos, isso dava a entender que o Espírito Santo foi “criado” pelo Pai e pelo Filho, enquanto os romanos apenas viam um processo de individualização da Trindade, dentro de uma totalidade divina. Porém, a situação tendeu a se deteriorar, e, diante da recusa da Bizâncio em aderir a tese teológica, numa tarde de 1054, um cardeal e dois enviados do papa entraram em “Hagia Sophia” com uma bula e colocaram-na no altar do templo. Era a bula de excomunhão de toda a Igreja Grega. Um diácono implorou para que o clérigo levasse de volta o documento. Este acabou por ignorar. E o diácono jogou o documento para fora da Igreja, na rua.

O “Grande Cisma” rompeu a idéia de unidade do império grego e da Cristandade. Concomitante a esse estado caótico, Bizâncio estava experimentando os primeiros sinais de decadência. Alexius Comnenus, grande estadista, habilidoso e intrigante político, foi um imperador, que apesar dos seus talentos, encontrou um Império ao meio do caos. Bizâncio viu suas terras tomadas pelos árabes no século VIII, na Palestina e ao Norte da África, e na Itália e regiões da Grécia, sofria a ameaça dos vários reinos bárbaros. Um outro povo aparece em cena, para ameaçar a soberania bizantina: os turcos.


Sob pressão e usando de artimanhas diplomáticas, no ano de 1095, Alexius, em nome da velha solidariedade cristã, pede ajuda ao papa Urbano II, para que se conclame exércitos cristãos em socorro ao velho império. O papa conclamou a cristandade ao combate, no Concilio de Clermont, e no ano de 1096, quando o imperador esperava uma tropa de mercenários para lutar contra os turcos, viu uma legião de mendigos e camponeses fanáticos, prontos a ameaçarem a paz de Constantinopla. Liderados pelo monge francês Pedro, o Eremita, a turba mata e saqueia tudo que vê pela frente: comunidades judaicas não são poupadas e os islâmicos também são massacrados. Sobre as portas da cidade bizantina, Comnenus recusara-se a abri-las ao pequeno exército de Pedro e o insuflou a lutar contra os infiéis. Despreparada e sem nenhuma experiência militar, a cruzada do eremita é massacrada pelos turcos.

O papa, chocado com a leva de fanáticos que iam para a Terra Santa, preconiza a seleção de cavaleiros nobres para a primeira grande cruzada. Liderados por Geofrey de Boullon, o grosso da cavalaria franca pega em armas e chega às portas do império grego. Quando estes chegam a Constantinopla, o imperador, astuciosamente, promete-lhes mantimentos, sob a condição de reconquistarem algumas cidades da Palestina. Feito isto, quando alguns cruzados retomam algumas cidades dos islâmicos, Alexius manda levantar as bandeiras bizantinas, a revelia dos cruzados, que ficam furiosos. Comnenus, mais uma vez, os empurra até a Palestina, quando os francos tomam Jerusalém dos muçulmanos. O imperador consegue expandir seu império decadente, explorando as relações diplomáticas contra seus aliados e inimigos.

Contudo, mais um século depois, a quarta cruzada de 1202 é exortada, em nome de reconquistar a Terra Santa, perdida em 1187, para Saladino. Entretanto, o que seria uma cruzada religiosa, acabou por ser uma monstruosa expedição de banditismo e terror. Os cruzados, bancados pelo Doge Dândolo, de Veneza, foram estimulados a saquearem cidades cristãs bizantinas, a fim de patrocinar pilhagens. Coincidentemente, um dissidente do imperador de Constantinopla, que disputava o poder, acabou por se aliar aos cruzados, que, com promessas de dinheiro, o elevariam como imperador. O papa, sabendo dessas histórias, impôs a excomunhão para quem atacasse cidades cristãs. Mas foi inútil. Constantinopla fora atacada e o rebelde foi elevado a Imperador, sob o nome de Aleixo IV, expulsando o antigo governante.

Porém, o imperador impôs uma pesada tributação sobre a população, para pagar os mercenários cruzados, o que ocasionou uma feroz rebelião. Um parente afastado de Alexius IV liderou um golpe de estado e o matou, declarando-se como imperador Alexius V. Os cruzados não se contentaram, e, em 1204, percebendo sua força militar, saquearam a cidade por três dias. Livros, relíquias sagradas, ícones, foram totalmente destruídos. Na catedral de Hagia Sofia, as tapeçarias foram rasgadas e os soldados beberam todo o vinho da Sacristia. A população não foi poupada do caos: freiras foram estupradas e súditos assassinados cruelmente. O saque de Constantinopla foi tão terrível, tão devastador, que a cidade nunca mais se recuperou da tragédia. O império foi fragmentado em três dinastias e só foi unificado em 1261, com a reconquista de Constantinopla pela dinastia dos imperadores Paleólogos.

Mas o Império Bizantino, no século XIV, era apenas uma sombra do seu legado. Depois de vários cercos sobre o império, nos anos 1391, 1402 e 1423, os turcos não se intimidam e querem expandir seu império. Em 1452, um grande sultão, chamado Maomé II, prepara a última investida sobre a cidade de Constantino. Bizâncio possuía uma arma, cuja utilidade causava sérios danos ao inimigo: o chamado “fogo grego”, uma granada feita de componentes químicos desconhecidos, que causava grandes estragos nas tropas inimigas, uma vez que o fogo gerado não se apagava com a água. Aliás, dizia-se que quando mais se jogava água contra o “fogo grego”, mais aumentava a intensidade do fogo. No entanto, Maomé II desenvolveu uma tecnologia, até então, incomum para a época: os canhões! Urbano, um engenheiro húngaro cristão, oferecera sua nova tecnologia para o imperador Constantino XI. O imperador recusou seus serviços, por causa do preço da arma. Então, o engenheiro ofereceu a tecnologia ao sultão, que aceitou de pronto. Uma ironia da história poderia ter selado o destino de Constantinopla.

A guerra começou, quando o imperador Constantino cobrou um tributo a um príncipe otomano, prisioneiro do império. Isso foi recebido como acinte e pretexto pelo sultão Maomé II, que iniciou as hostilidades contra a capital imperial. A sensação de medo e terror dominava os súditos do império, já que a monarquia estava fragilizada e os bizantinos não conseguiam mais forças para resistir às investidas dos turcos. O estado piorou quando o sultão mandou empalar quase cem cristãos aos olhos dos bizantinos, pelas muralhas, afirmando que ocorreria o mesmo a todos os cristãos da cidade.

Os turcos cercaram a capital e intensos bombardeios de canhões fragilizavam as defesas da cidade. Os bizantinos, desesperados, pediram auxilio do papa e dos cristãos ocidentais. Navios vindos da Itália, em particular, de Veneza, ofereceram ajuda logística e militar aos bizantinos e o papa, ao fazer parte da ajuda, exigia que a Igreja de Bizâncio se unificasse a Igreja Romana, aceitando a liturgia latina e a sujeição ao papado. Muitos cristãos gregos ficaram indignados; alguns deles comentavam o seguinte: “antes os turcos nos dominassem, do que os cristãos a nos ajudar . . .”

Maus presságios dominavam a pequena e corajosa cidade grega. O clima cinzento da cidade alimentava as maiores superstições. Enquanto isso, os sinos das Igrejas de Constantinopla tocavam, para elevar o moral das tropas, cansadas, arredias. No dia 29 de maio de 1453, oitenta mil turcos atacaram cerca de quase dez mil bizantinos nas muralhas da cidade. Os portões foram abertos e os turcos mataram o maior numero de bizantinos que poderiam encontrar. Saquearam Hagia Sophia e pilharam toda a cidade. Milhares de súditos bizantinos foram escravizados e as mulheres não foram poupadas, tornadas servas sexuais dos turcos. De forma brutal, melancólica, trágica, o império bizantino foi extinto.

A perda de Bizâncio foi um duro golpe para a Cristandade. A hostilidade antiturca, comum na Europa ocidental desde o inicio das cruzadas, tornou-se uma espécie de patologia, de imaginário cultural do ódio. Os turcos eram vistos como os piores inimigos da Cristandade, depois dos islâmicos. De fato, a destruição do Império Bizantino abriu portas para a invasão turca sobre todo o Leste Europeu. E durante todo o século XVI, a Europa esteve ameaçada de ser atacada pelos turcos.

Bizâncio desapareceu, mas deixou seu legado. Desde a Igreja de Hagia Sophia, hoje, uma mesquita, até o direito, a religião, a pintura e a música, seu legado continua vivo, atuante, no aspecto maior da civilização.

A MÚSICA BIZANTINA E A TRADIÇÃO SACRA RUSSA.

A música bizantina influenciou profundamente o mundo cristão ortodoxo, no imaginário eslavo e oriental. A música sacra se tornou a voz religiosa do povo medieval da Rússia, Sérvia, Bulgária e Romênia, cujas tradições remontam às homílias, às histórias dos santos e mesmo das citações bíblicas do Evangelho. A devoção marianista, comum nas obras de arte gregas, reflete em muitos hinos de louvor a Virgem Maria. Aliás, muitos cantos vieram diretamente de suas fontes bizantinas e foram adaptadas ao mundo cultural eslavônio. Tais cantos melódicos variam da polifonia até a chamada melodias de signo russos, ou “znamenny”. No canto ortodoxo russo, que herdou com proximidade a literatura musical bizantina, há as melodias de “caminho”, ou “Putevoi”, usado nas missas, e as melodias “demestvenny”, ou de festas religiosas. As apresentações musicais aqui retratam a tradição bizantina disseminada na Europa Oriental. Acompanha também uma música turca, composta na época da tomada da cidade de Constantinopla.

(Música ortodoxa: Bizâncio – Sérvia – Rússia – Século XV- XVI- XVII)

01. És digna de Louvor (Melodia bizantina- Século XV).

02. Canção do Querubim (Melodia sérvia)

03. No sexto Mês (Melodia Russa- provavel. Século XVI).

04. O Ladrão na Cruz ( Melodia Russa- provavel. Século XVI).

05. O Prelado entrou na Igreja (Nikolay Diletsky –século XVII).
(Turquia- Século XV)

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