
Muitos historiadores impiedosos afirmam que a Idade Média é a Idade das Trevas. Contudo, será que há coisa mais medieval, mais cortês, mais cavalheiresca do que beijar a mão da dama? Ou de cantar a seresta? O seresteiro de hoje é o trovador de séculos atrás. A poesia de culto ao feminino é uma herança que tem raízes não somente na poesia trovadoresca, como também na religião. Foi o cristianismo, na influência judaica, que criou esta reverência ao feminino no ocidente, como objeto de amor. Os Cantares de Salomão são um exemplo clássico de ritual amoroso, escrito em poesia, como forma de demonstração de afeto de um homem pela mulher. Por outro lado, o erotismo das musicas árabes trazidas pelos cruzados, nas suas investidas na Terra Santa, trouxeram os elementos estilísticos das trovas européias e do amor cortês. O troubadour franco, que vinha das sangrentas guerras contra os sarracenos, trazia na bagagem uma viola e uma inspiração amorosa. Seja na Corte de Eleanor de Aquitânia, como nas aventuras e desventuras da Terceira Cruzada de seu filho Ricardo Coração de Leão, eis que ouvimos as músicas de amor cantadas no francês antigo. Não esqueçamos das regras amorosas de André Chapelain, de tão magnífico tratado do amor cortês.
O que é o alaúde e a guitarra, senão instrumentos musicais árabes? Aliás, se os francos criaram trovas e mais trovas de amor, os castelhanos e os galegos foram grandes cantadores do amor cortês. Os próprios galegos e castelhanos não negam suas origens francas nas figuras dos Condes da Borgonha, guerreiros que posteriormente consolidaram o Reino de Portugal e Castela. Aliás, eles introduziram um culto relativamente incomum da donzela amada: a mistura do amor à mulher pelo amor a Virgem Maria. Há na música ibérica um sentido dúbio de linguagem amorosa, em que o amor e a religião se misturam ao erotismo. Não se deve esquecer que o amor do cavaleiro a sua dama é uma relação de suserania e vassalagem, tal como um senhor e servo. A dama é a “mia Señor” enquanto o cavaleiro é servo da mulher amada. O beijo na mão da donzela vem deste princípio de submissão amorosa. Isto porque quando se escuta as músicas amorosas de Santiago de Compostela, ouvimos os cantares dignos dos árabes, mas trovados em galego-português. De fato, essa relação do amor cortês ao culto do feminino tem a ver com a fundamentação platônica do romance amoroso na Idade Média.

Por outro lado, a discrição no trato amoroso era uma espécie de etiqueta, de jogos amorosos entre os amantes. Se temos as músicas e poesias de amor, lembremos das “rosas que falam”. Se a mulher é divina, ou quase santa, é também um belo ser da natureza, uma rosa, mistura de beleza e vaidade. Já dizia o poeta do Rio de Janeiro para sua dama: as rosas não falam, simplesmente as rosas exalam o cheiro que roubam de ti. . .aiiiii. . .
Um outro aspecto interessante do amor cortês é sua relação com a morte. O amor se confunde com a fatalidade da vida, já que parece que os sentimentos sublimes do amor se obscurecem com a extinção do homem. De fato, a relação entre o amor e a morte parece ter duas relações: o amor é uma energia feroz, destruidora, que acaba consumindo a alma do amante. É ferida mortal, capaz de destruir as esperanças da vida na pessoa amada. E por outro, a morte liga o amor a eternidade dos amantes, quando este amor é sentido e intenso, só que transitório pela vida. A morte tem um sentido simbólico tanto do sentimento destruidor como da eternidade. Aliás, a morte era uma obsessão, acompanhava o homem medieval nas suas tragédias cotidianas, e seu consolo era acreditar na eternidade, dentro de um universo fatalista do mundo religioso. Juras de amor eterno, para muitos poetas, são eternos até depois da morte. Petrarca e Dante Alighieri dedicaram versos e mais versos a duas donzelas loiras, desejadas mortas e inatingíveis, Laura e Beatriz. Na Commedia de Dante, Beatriz é a mulher que conduz o poeta ao Paraíso. E os versos de Petrarca viraram temas de amor e morte em muitas canções italianas da Renascença.
Porém, o que é o amor cortês? Ser cortês vem da palavra cortesia, que é gentileza, que por definição é ligada a idéia da corte. Por conseqüência, o cortês acabou por se tornar o cortesão, ou seja, o homem nobre da corte, com seus modos, valores, etiquetas e regras da prática aristocrática e amorosa. Essas regras acabaram por se tornar os códigos da cavalaria e posteriormente uma ética comum do povo. E daí vem o termo “cavalheiro”, que nada mais é do que uma conceituação advinda de cavaleiro.

Voltando aos amores à distância do cortesão, eis que um ritual muito comum aos amantes modernos que é guardar o retrato da pessoa amada. Em épocas passadas, o retrato às vezes significava o culto amoroso de uma pessoa já falecida, em que sua figura num amuleto ou mesmo num pequeno quadro eternizava as lembranças na fisionomia da pessoa morta. Isto porque na Renascença, a pintura conheceu seu auge de divulgação em famílias nobres. Há uma história de um cortesão elizabetano destruidor de corações femininos, que pela brecha da porta, viu uma dama contemplar por horas seu retrato, feito a pedido da mesma a um pintor.
É claro que o amor cortês não era em si só platônico. Uma boa parte desses jogos amorosos chegava ao que podemos dizer “finalmente”. O platonismo aparente disfarçava segundas intenções. O caso mais clássico e mais polemico é o Don Juan. Ninguém sabe ao certo sua história, e sim a fama do cavalheiro cortesão sofisticado, impetuoso, mulherengo e sedutor, arrasa-quarteirão de sentimentos femininos. Diz-se de um cavaleiro espanhol discretíssimo e que andava em dia com as etiquetas amorosas da cortesania, que era um verdadeiro furacão de mulheres na corte espanhola. Raramente uma mulher lhe escapava.

A manifestação do amor cortês foi um processo artístico e civilizatório, que tornou as relações entre homem e mulher cada vez mais fortes em laços afetivos. Elevou-os ao infinito. Quando se vê que hoje em dia os jogos da cortesania, as poesias, as exaltações do amor, as serestas, as rosas, o beijar da mão, e todos os demais rituais aristocráticos que humanizaram o amor entre o homem e a mulher podem estar em vias de se extinguir, eis que me surge a imagem da mesa farta com luz de velas: a manifestação do amor cortês nostálgica do ambiente do passado, numa realidade que pode não existir mais.
(Canções do amor cortês: entre o amor e a morte - século XVI).
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