Monday, February 26, 2007

O amor cortês:arte e processo civilizatório. . .

Quando falamos de civilização, sempre lembramos do direito, da filosofia, das artes, da política, das letras, da música e de outras atividades intelectuais da cultura humana. Sem esquecer, naturalmente, dos costumes. Por falar em costume, eis que um dos aspectos mais marcantes do processo de civilidade, é precisamente o amor. Falo do amor, não somente do sentimento em si, como também dos jogos amorosos, das cortesias, das juras, das manifestações poéticas, e enfim, dos compromissos de afeição entre um homem e uma mulher. Quando um homem manda rosas, abre as portas do carro, faz poesias, escreve cartas, toca uma seresta ou paga a conta da mulher amada, está se falando de séculos e séculos de regras, costumes e ações que se arraigaram na cultura humana, a fim de sofisticar as relações humanas. O particular de tudo isso é que tais regras de etiqueta amorosa foram desenvolvidas entre a Idade Média e a Renascença, em uma época conhecida por ser particularmente difícil e violenta.

Muitos historiadores impiedosos afirmam que a Idade Média é a Idade das Trevas. Contudo, será que há coisa mais medieval, mais cortês, mais cavalheiresca do que beijar a mão da dama? Ou de cantar a seresta? O seresteiro de hoje é o trovador de séculos atrás. A poesia de culto ao feminino é uma herança que tem raízes não somente na poesia trovadoresca, como também na religião. Foi o cristianismo, na influência judaica, que criou esta reverência ao feminino no ocidente, como objeto de amor. Os Cantares de Salomão são um exemplo clássico de ritual amoroso, escrito em poesia, como forma de demonstração de afeto de um homem pela mulher. Por outro lado, o erotismo das musicas árabes trazidas pelos cruzados, nas suas investidas na Terra Santa, trouxeram os elementos estilísticos das trovas européias e do amor cortês. O troubadour franco, que vinha das sangrentas guerras contra os sarracenos, trazia na bagagem uma viola e uma inspiração amorosa. Seja na Corte de Eleanor de Aquitânia, como nas aventuras e desventuras da Terceira Cruzada de seu filho Ricardo Coração de Leão, eis que ouvimos as músicas de amor cantadas no francês antigo. Não esqueçamos das regras amorosas de André Chapelain, de tão magnífico tratado do amor cortês.

O que é o alaúde e a guitarra, senão instrumentos musicais árabes? Aliás, se os francos criaram trovas e mais trovas de amor, os castelhanos e os galegos foram grandes cantadores do amor cortês. Os próprios galegos e castelhanos não negam suas origens francas nas figuras dos Condes da Borgonha, guerreiros que posteriormente consolidaram o Reino de Portugal e Castela. Aliás, eles introduziram um culto relativamente incomum da donzela amada: a mistura do amor à mulher pelo amor a Virgem Maria. Há na música ibérica um sentido dúbio de linguagem amorosa, em que o amor e a religião se misturam ao erotismo. Não se deve esquecer que o amor do cavaleiro a sua dama é uma relação de suserania e vassalagem, tal como um senhor e servo. A dama é a “mia Señor” enquanto o cavaleiro é servo da mulher amada. O beijo na mão da donzela vem deste princípio de submissão amorosa. Isto porque quando se escuta as músicas amorosas de Santiago de Compostela, ouvimos os cantares dignos dos árabes, mas trovados em galego-português. De fato, essa relação do amor cortês ao culto do feminino tem a ver com a fundamentação platônica do romance amoroso na Idade Média.



Interessante perceber que este sentimento de pureza amorosa da dama inatingível é uma regra comum em quase todos os homens apaixonados. Numa sociedade guerreira, patriarcal e onde os casamentos eram arranjados, era perfeitamente possível entender do porquê da platonização da dama inatingível. Em especial na Península Ibéria, nos reinos árabes, este culto platônico do amor feminino estava associado a uma velha tradição árabe, quando as donzelas muçulmanas solteiras eram proibidas de serem vistas pelos homens antes do casamento. Na Espanha Islâmica, tais damas viam o mundo pelas janelas cobertas de arabescos de madeira que as tornavam invisíveis, e isso atiçava a fantasia dos homens, apaixonados pela figura da mulher que não viam. Os judeus espanhóis não faziam diferentes em suas cantigas de amor soletradas em ladino, ou seja, o espanhol judaico. Eles se apaixonavam até “d´un aire d´una mujer, d´uma mujer muy hermoza, linda de mi corazón”. . . tal como tocava em suas canções.

Por outro lado, a discrição no trato amoroso era uma espécie de etiqueta, de jogos amorosos entre os amantes. Se temos as músicas e poesias de amor, lembremos das “rosas que falam”. Se a mulher é divina, ou quase santa, é também um belo ser da natureza, uma rosa, mistura de beleza e vaidade. Já dizia o poeta do Rio de Janeiro para sua dama: as rosas não falam, simplesmente as rosas exalam o cheiro que roubam de ti. . .aiiiii. . .


Um outro aspecto interessante do amor cortês é sua relação com a morte. O amor se confunde com a fatalidade da vida, já que parece que os sentimentos sublimes do amor se obscurecem com a extinção do homem. De fato, a relação entre o amor e a morte parece ter duas relações: o amor é uma energia feroz, destruidora, que acaba consumindo a alma do amante. É ferida mortal, capaz de destruir as esperanças da vida na pessoa amada. E por outro, a morte liga o amor a eternidade dos amantes, quando este amor é sentido e intenso, só que transitório pela vida. A morte tem um sentido simbólico tanto do sentimento destruidor como da eternidade. Aliás, a morte era uma obsessão, acompanhava o homem medieval nas suas tragédias cotidianas, e seu consolo era acreditar na eternidade, dentro de um universo fatalista do mundo religioso. Juras de amor eterno, para muitos poetas, são eternos até depois da morte. Petrarca e Dante Alighieri dedicaram versos e mais versos a duas donzelas loiras, desejadas mortas e inatingíveis, Laura e Beatriz. Na Commedia de Dante, Beatriz é a mulher que conduz o poeta ao Paraíso. E os versos de Petrarca viraram temas de amor e morte em muitas canções italianas da Renascença.

Porém, o que é o amor cortês? Ser cortês vem da palavra cortesia, que é gentileza, que por definição é ligada a idéia da corte. Por conseqüência, o cortês acabou por se tornar o cortesão, ou seja, o homem nobre da corte, com seus modos, valores, etiquetas e regras da prática aristocrática e amorosa. Essas regras acabaram por se tornar os códigos da cavalaria e posteriormente uma ética comum do povo. E daí vem o termo “cavalheiro”, que nada mais é do que uma conceituação advinda de cavaleiro.

Neste ínterim, outras práticas foram aperfeiçoadas como forma de demonstração de amor, a partir da renascença. Um aspecto interessante é o amor à distância implicada no amor cortês. Ele é um amor ritual, sutil, simbólico, cheio de nuances e puramente platônico. Um exemplo disso é o que podemos chamar um dos mais belos tratados de cortesania, O Livro do Cortesão, escrito pelo fidalgo italiano Baldassare Castiglione, em 1527. Em um de seus capítulos, o livro nos revela a relação fidalga do cortesão com a dama palaciana: discreta, desinteressada, espiritual, em que a demonstração de amor a dama não seja tão direta a ponto de assustá-la, mas também não tão escondido em que ela não possa notar. A amizade do cortesão e da dama disfarça o amor interior que cada um nutre pelo outro. Mas em contrapartida, a mulher donzela é o centro das atenções do cavaleiro. O talento do cortesão em dominar vários idiomas, dançar, tocar instrumentos musicais e ser um bom manejador da espada e no cavalo, visava chamar as atenções da dama. No entanto, essa atenção deve ser conseguida com “sprezzatura”, displicência, como se a natureza culta, gentil e galante do cortesão fosse algo inerente e natural dele, sem artificialismo ou afetações.

Voltando aos amores à distância do cortesão, eis que um ritual muito comum aos amantes modernos que é guardar o retrato da pessoa amada. Em épocas passadas, o retrato às vezes significava o culto amoroso de uma pessoa já falecida, em que sua figura num amuleto ou mesmo num pequeno quadro eternizava as lembranças na fisionomia da pessoa morta. Isto porque na Renascença, a pintura conheceu seu auge de divulgação em famílias nobres. Há uma história de um cortesão elizabetano destruidor de corações femininos, que pela brecha da porta, viu uma dama contemplar por horas seu retrato, feito a pedido da mesma a um pintor.

É claro que o amor cortês não era em si só platônico. Uma boa parte desses jogos amorosos chegava ao que podemos dizer “finalmente”. O platonismo aparente disfarçava segundas intenções. O caso mais clássico e mais polemico é o Don Juan. Ninguém sabe ao certo sua história, e sim a fama do cavalheiro cortesão sofisticado, impetuoso, mulherengo e sedutor, arrasa-quarteirão de sentimentos femininos. Diz-se de um cavaleiro espanhol discretíssimo e que andava em dia com as etiquetas amorosas da cortesania, que era um verdadeiro furacão de mulheres na corte espanhola. Raramente uma mulher lhe escapava.

Temos um outro fenômeno, relativamente recente para os padrões do amor cortês, mas que se incorporou nele: as cartas amorosas. Raramente na Idade Média se escrevia cartas, até porque a população européia em geral era analfabeta. Cartas eram escritas pelos doutos da época, que era o clero e por uns raros nobres cultos. Na Renascença, a alfabetização começou a ser difundida e as cartas amorosas começaram a aparecer. Parece que, para burlar as convenções da época. Mulheres condenadas ao casamento arranjado trocava cartas com seus amantes platônicos e muitas delas fugiam. Outras esperavam as cartas dos seus cavaleiros que estavam nos campos de batalha, vencendo distâncias e mais distâncias. E numa sociedade em que as normas rígidas de conduta se contrastavam com o desejo de burlá-las, mulheres enclausuradas nos conventos amavam e eram amadas pelas palavras do amante, na pena e no papel. A carta está para o século XVI e alhures, como a internet está para as distâncias e dificuldades atuais. Mesmo assim, o charme das cartas nunca se apagou. Cartas são pessoais, intimistas, pois a palavra em punho do escritor está diretamente vinculado no papel, ao contrário da impessoalidade virtual. As palavras escritas no papel expressam sentimentos, erros, acertos e construções lingüísticas de como eles foram escritos. Já a técnica implícita da internet não retrata nem metade disso. Isto, sem contar a história de pessoas que escreviam cartas amorosas umas as outras e jamais se conheceram. É incrível pensar numa forma de amor deste jeito. Mas provavelmente deve ter existido.


A manifestação do amor cortês foi um processo artístico e civilizatório, que tornou as relações entre homem e mulher cada vez mais fortes em laços afetivos. Elevou-os ao infinito. Quando se vê que hoje em dia os jogos da cortesania, as poesias, as exaltações do amor, as serestas, as rosas, o beijar da mão, e todos os demais rituais aristocráticos que humanizaram o amor entre o homem e a mulher podem estar em vias de se extinguir, eis que me surge a imagem da mesa farta com luz de velas: a manifestação do amor cortês nostálgica do ambiente do passado, numa realidade que pode não existir mais.
(Canções do amor cortês: entre o amor e a morte - século XVI).

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