
Portugal nasceu de uma epopéia: a Reconquista, com a expansão do Reino de Leão e Castela ao norte do Rio Douro e o estabelecimento do Condado Portucalense (menção a “Portu Cale”, Porto do Cal, antigo porto romano), fruto da recompensa do reino castelhano para o conde Henrique, vindo do Borgonha, na luta contra os mouros. O condado devia prestar vassalagem ao Reino de Castela, a fim de defender o reino ao sul. A partir do Castelo de Guimarães, o filho desta Casa, Dom Afonso Henriques, através de muitas guerras, acaba por expandir seu feudo contra os islâmicos, derrotando-os em Campo d`Ourique, em 1139. No entanto, em 1140, recusa-se a prestar vassalagem ao antigo senhor de Castela e na batalha de Valdevez, derrota as tropas castelhanas, declarando a independência do Reino de Portugal e fundando, juntamente, a casa dinástica da Borgonha. Sua coroação foi reconhecida pelo papa, somente em 1179, quando o próprio Afonso Henriques foi elevado à realeza, ocasião em que pacificou a luta entre os dois reinos. Foi neste intervalo de tempo em que Afonso Henriques, agora Afonso I de Portugal, conquistou Santarém, Lisboa e Évora dos muçulmanos. Consolidada a existência do reino português, os cristãos “moçárabes”, sob o jugo islâmico na região do Rio Douro, deixam de considerar a língua árabe, e como o latim se tornou uma língua esquecida e fora da compreensão para a maioria da população, foi legitimado o galego como linguagem comum, identificando-se com a fala de Santiago de Compostela.
Com a independência do Condado Portucalense, o galego, língua primitiva surgida do latim vulgar, tal como o provençal, castelhano, francês, italiano e várias dissidências menores, ganhou autonomia e expressões próprias, uma vez que se libertou da forma etimológica do latim clássico. A descaracterização do latim na fala vulgar do povo tinha tudo a ver com a perda da referência escrita da linguagem latina. Ou seja, com a carestia da escrita, já que a população, em geral, era analfabeta, a expressão coloquial adquiriu novas formas de linguagem, haja vista que não tinha regras específicas para a construção das palavras. Quando o reino português outorgou o dialeto galego, não pensemos que isso tinha um caráter necessariamente nacional ou institucional. A língua, neste contexto, tinha apenas uma função oral. O latim oficiava ainda muita coisa, porque era a única língua com peso que inseria a unidade espiritual da sociedade medieval, dentro de um contexto cultural ancestral romano e mesmo, da Igreja Católica. Em algumas aldeias de Portugal era possível não raramente encontrar camponeses ou nobres falando expressões castelhanas ou leonesas sem notar diferenças com o galego. Ou, em alguns casos, confundiam-se até com o árabe.
O galego só começa a ganhar forma institucional, em Portugal, quando se torna língua escrita, tanto como documentação histórica, como principalmente literária. A escrita recém estabelecida não tinha compromisso com uma gramática coesa, já que os escritores se preocupavam mais em reproduzir as expressões fonéticas e da fala. É o chamado “período fonético”, onde a escrita era confusa e diversa, variando de feudo para feudo, região para região. Em compensação, nesta mesma época desenvolvia a literatura trovadoresca.

Para melhor compreender o pensamento trovadorístico português, é preciso acompanhar o pensamento vigente da época. A sociedade portuguesa, tal como a sociedade européia medieval, partia-se das solidariedades comuns entre a religião e as relações feudais. Suserania e vassalagem, valores herdados da organização política germânica, estipulavam critérios sociais através da hierarquia e estamento social, embasada na lealdade e submissão de um indivíduo de classe inferior para outro de classe superior, em troca de favores mútuos. Na tradição germânica, tal relacionamento implicava a fidelidade do grupo para com o líder, que ao reconhecer os serviços cumpridos, concedia favores a seus subalternos. A Igreja Católica soube cristianizar tais pactos, introduzindo valores judaicos-cristãos, em vista de legitimar a autoridade dos nobres. Tal como os reis de Israel, homenagens, ritos de cavalaria e compromissos de lealdades comuns entre nobres e plebeus e mesmo as coroações dinásticas, eram unções que imitavam a reverência do “Messias”, ou melhor, do “Ungido”, no Antigo Testamento. A religião católica influenciava profundamente, junto com a cavalaria, a ética comum, refletindo sobre a conduta individual. Sendo uma sociedade de estamento, cada indivíduo tinha direitos e obrigações de acordo com a classe social no qual pertencia. E a Igreja, detentora da cultura e paladina dos valores católicos, apregoava uma idéia transcendentalista da realidade, com a difusão da fé cristã. A moral católica influenciava cada costume do homem medieval europeu, reverente pela idéia de Deus, do Juízo Final e obcecado pelo sobrenaturalismo. A sociedade portuguesa não fugia à regra. Pelo contrário, historicamente, Portugal tornou-se uma braço armado do catolicismo romano, junto com a Espanha, herdando o papel da velha tradição cavalheiresca do reino franco.
As cantigas de amor, embora houvesse algo profano no afeto direcionado à mulher, sua expressão é de um profundo platonismo, onde a figura feminina é inatingível, reproduzida na tristeza e no amor fatalista. Numa sociedade onde as relações conjugais eram relações de contratos, ou seja, casamentos políticos arranjados, eram compreensíveis as idealizações de uma amada inalcançável. O mais curioso é a relação do trovador com sua dama, ou melhor, o “amor cortês”, o sentimento de submissão e vassalagem à mulher amada, comparada a um status senhorial e suserano. Nas poesias amorosas, os trovadores direcionam à sua amada como “mia señor”, haja vista que na sociedade medieval, a mulher não tinha personalidade jurídica e a língua galega arcaica não concebia flexões de gênero para papéis exclusivamente masculinos.
Embora o reino português seguisse o princípio medieval da “divisão” do reino para governá-lo, na prática, a uniformidade lingüística e cultural, além da tradição empreendedora da monarquia na fundação do país, acabou por favorecer, desde cedo, a centralização política precoce do reino. Embora houvesse conflitos de ordem dinástica e hostilidades internas à centralização do poder real, no entanto, a monarquia portuguesa possuía um conjunto de famílias nobres bastante unidas e coesas, ocasião em que neutralizava as dissidências internas do país. Há outro aspecto que influenciou a centralização do reino, que era o combate ao inimigo comum, na figura dos mouros e do próprio reino de Castela. Portugal foi a única nação que conseguiu preservar a independência política, frente à ascensão do reino castelhano como monarquia centralizadora e imperial da Península Ibérica. Curiosamente, porém, uma boa parte da nobreza lusitana recalcitrante, frente às investidas da autoridade monárquica, aliava-se aos reis de Castela. Há de se compreender que o conceito de nacionalidade, nesta época, não existia e as lealdades sociais e políticas eram relacionadas a pactos de casta ou de famílias. Isso porque as famílias nobres que disputavam entre si o poder possuíam variados graus de parentesco. Mesmo a família real de Castela, que reivindicava direitos dinásticos ao reino português, tinha relações consangüíneas com a Casa real portuguesa. Henrique, senhor do Condado Portucalense e pai de Afonso Henriques, era genro de Afonso VI, já que se casou com a filha bastarda do rei de Castela e o próprio Afonso Henriques era primo de seu rival, Afonso VII, de Castela. Aliás, o próprio Afonso Henriques guerreou contra os exércitos da própria mãe, contra a anexação do Condado Portucalente pela Galícia.
Em 1249, o Reino de Portugal, na figura de Dom Afonso III, conquista Algarve dos mouros, consolidando o território português atual. Em 1290, Dom Dinis, rei de grande cultura e compositor de várias trovas medievais, funda a universidade de Coimbra. Dom Pedro I, dito, o “cruel”, protagonizou uma das histórias mais marcantes da crônica e literatura portuguesa: quando era príncipe, foi apaixonado por uma donzela galega, chamada Inês de Castro, que era dama de companhia de sua esposa, Constança. O caso foi mais além, quando o príncipe herdeiro começara a ter filhos com a jovem, e a assumiu publicamente, ameaçando a estabilidade política entre os reinos de Portugal e Castela. Falecida Dona Constança, o trono português estava aberto a dona Inês e seus possíveis bastardos. O rei Afonso IV e a nobreza portuguesa, temendo as influências políticas castelhanas sobre o príncipe Pedro, através da família e dos filhos da amante galega, fez de tudo para afastar a donzela do príncipe, exilando-a para a Espanha. Sem sucesso, o rei tomou uma medida drástica e monstruosa: mandou assassinar a pobre Inês. Numa manha fria do dia 7 de janeiro de 1355, na ausência do príncipe, que estava na caça, os executores entraram no Mosteiro de Santa Clara e degolaram a jovem dama. Quando o príncipe soube da morte da donzela, acabou por se rebelar contra seu pai, movendo uma feroz guerra civil para destroná-lo. Somente meses depois da morte de Inês, em agosto de 1355, o pai fez as pazes com o filho, embora nunca o tivesse perdoado pelo crime.
Quando ascendeu ao trono, em 1357, Dom Pedro moveu todos os esforços para vingar os assassinos da sua amada; assinou um tratado com o rei de Castela, para que se deportasse qualquer foragido de seu reino. Conseguiu capturar dois partícipes do assassinato de Inês de Castro, e numa demonstração de impiedade, que lhe fez a fama de “cruel”, mandou arrancar o coração dos executores, enquanto comia cebolas e se banqueteava. Depois mandou queimar os cadáveres em praça pública. Posteriormente, em 1360, elevou Inês de Castro a rainha póstuma de Portugal e legitimou seus filhos bastardos. Diz a lenda que mandou sentar o cadáver de Inês de Castro num trono e obrigou toda a nobreza portuguesa a beijar a mão da morta. O Rei Pedro faleceu em 1367 e antes de sua morte, mandou construir um dois belos túmulos, para si e sua amada, frente a frente, para que segundo a lenda, “possam olhar-se nos olhos quando despertarem no dia do Juízo Final”. Enfim, Camões chamava Inês de Castro como a mulher cuja tragédia foi “misera e mesquinha, que depois de morta foi rainha”. . .
Já no século XIV, a família da Borgonha entra em decadência. O filho legítimo de Dom Pedro I, o Cruel, com Dona Constança, o rei Fernando I de Portugal, faleceu, sem deixar herdeiros, em 1383. A crise dinástica ameaça a independência portuguesa, pois a filha de Fernando I, Beatriz, era casada com o rei de Castela e este reivindica direitos políticos sobre a coroa portuguesa. A nobreza portuguesa se divide: uma parte dos senhores feudais conspira contra a independência da Coroa e apóia a rainha Leonor Teles de Meneses, mãe de Beatriz. A rainha Leonor ainda reconhece publicamente um caso amoroso com o Conde de Andeiro, e ambos governam Portugal, para desgosto de uma boa parte do povo e da nobreza anticastelhana. O Reino de Portugal corre perigo e a burguesia nascente de Lisboa, junto com o povo e uma parte da nobreza nacionalista, aclama o filho bastardo do rei Pedro I, meio-irmão do Rei Fernando, Dom João, Mestre de Avis, como herdeiro legítimo do trono português.


A família de Nuno Álvares fundou a dinastia dos duques de Bragança, que séculos depois, foi elevada a monarquia de Portugal. Com grandes serviços prestados a Coroa, o Condestável abandonou a vida militar e morreu muito idoso, abraçando a vida religiosa como carmelita, em 1431.


Com a ascensão de Avis, a língua portuguesa começa a dissociar do galego, ganhando ares de língua nacional. O trovadorismo nesta época cai em desuso, sendo substituída por uma nova arte, influenciada pela corte espanhola: a música e poesia palaciana. Fruto de complexidade burocrática do Reino, a música e poesia palacianas surgem como entretenimentos de uma corte centrada na figura do rei. Tais poesias se caracterizam pela métrica de redondilha e pela sofisticação estilista da poesia, sem o primitivismo das trovas medievais. Grande parte das músicas e poesias é compilada, a mando do próprio monarca, como prova da dedicação do reino à cultura, e as coletâneas poéticas e musicais são chamadas de “Cancioneiros”. Muitas das músicas são datadas por volta de 1450, nos reinados de Afonso V e João II, embora fossem somente publicadas em 1516, por Garcia de Resende, sob o título de Cancioneiro Geral.
Uma outra documentação importante, diz respeito ao chamado “Cancioneiro de Elvas”, obra-prima compilada no século XVI, mas, com músicas que variam do final do século XV e no inicio do século XVI. O Cancioneiro de Elvas é uma perfeita caracterização de estilos musicais da época, que vão da polifonia flamenga, então nascente em Portugal, até os vilancetes (em castelhano, vilancicos) espanhóis, herdados do Cancioneiro Del Palacio. Curiosamente a influência espanhola é sentida nos cancioneiros portugueses: além da predominância das canções em língua castelhana, há peças do teatrólogo espanhol Juan Del Encina. As músicas palacianas falam do amor e da morte, no sentido do amor cortês. Do pessimismo da vida e da redenção religiosa. Ou no caso dos vilancetes, temas pastoris, que misturam com a singeleza do amor vilanês. Enfim, obras-primas que finalizam o mundo medieval e abrem portas ao Renascimento português.
(Cancioneiro de Elvas – Portugal – Século XV – XVI).
01. Que he o que vejo. (Anônimo).
02. Las tristes lágrimas mias. Instrumental (Anônimo).
03. Corazón mio. - Instrumental (Anônimo)
04. Cuydados meus tan cuidados. (Anônimo).
05. A la voy. (Anônimo).
06. Romerico Tú que vienes. (Juan Del Encina- 1469 - + 1530).
5 comments:
Conde loppeux patrocina arte de qualidade
Excelente informação. parabéns. Vim À procura de Branca de Castela. Irei linkar nos meus blogs
Não tem mais como salvar as músicas?
Vou dar uma olhada nisso, pra ver se dá pra salvar. Abraços!
O que é isso tudo?
Trabalho de dissertação de mestrado ou uma tese de doutorado?
Parabéns pela matéria e pelas músicas. Vc tem gosto refinado.
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