Saturday, January 20, 2007

As mulheres da Idade Média: elas cantam e os homens vão a guerra. . .


Nos séculos XII e XIII, a França produziu uma grande leva de cavaleiros cruzados, prontos a combater os islâmicos na Terra Santa e nos domínios árabes da Espanha. Com as hostilidades turcas contra cristãos na Terra Santa e o pedido de ajuda do imperador de Constantinopla, Alexius Comnenus, ao papa Urbano II, no Concílio de Clermont, em 1096, ele conclamou muitos cavaleiros para que formassem a cruzada contra os árabes. Já havia ocorrido alguma outra “cruzada” de camponeses fanáticos, que foram facilmente repelidos pelos guerreiros islâmicos. No entanto, a força militar dos cavaleiros estava pronta para atacar os muçulmanos, divididos e fragmentados em guerras entre várias de suas facções étnicas e religiosas. De fato, o Reino Latino de Jerusalém, ou “Outremer” (Ultramar), foi criado por um duque, Godofredo de Boullon, que no ano de 1098, tomou a cidade de Jerusalém dos islâmicos. Um banho de sangue se seguiu à tomada da cidade, e quase toda a população islâmica foi chacinada pelos cruzados. Até os judeus não foram poupados: desesperados, estes se esconderam na sinagoga e os cruzados tocaram fogo, queimando-os vivos. Os cronistas medievais afirmaram que a matança foi tão grande, que na Via Apia, a passagem onde Cristo passou seu suplicio até o Calvário, o sangue chegava até os tornozelos dos cruzados. A ironia da história é que os islâmicos mortos pela invasão cruzada nem eram mais os turcos hostis, e sim os fatímidas, que pouco ou nada tinham a ver com a rivalidade turca dos cristãos e que tinham tomado recentemente Jerusalém dos turcos.

Anos depois do massacre, o Reino de Outremer começou a prosperar. Ele se expandiu e algumas outras cidades foram conquistadas. Foi daí que nasceram as grandes ordens militares medievais, os Templários e os Hospitalários, fundados para acompanhar os peregrinos, hospedá-los e protegê-los contra as investidas de bandidos e saqueadores, além dos inimigos islâmicos.

O comércio também prosperou, e os descendentes dos primeiros conquistadores acabaram por assimilar muito dos costumes árabes. Inclusive, houve muitos casamentos mistos entre francos, gregos e mesmo árabes.

As relações diplomáticas entre os cruzados e islâmicos variavam da guerra pura e simples, até a coexistência pacifica entre eles, embora precária. Isso chamava a atenção de vários nobres na França, que vítimas da fome, da miséria e belicosos ao extremo, queriam fazer fortunas em Outremer. Não isenta o fato de que muitos outros cavaleiros franceses foram para a Terra Santa em nome da fé, para defender a Cristandade dos islâmicos. Há casos e não são poucos, de homens que abandonaram suas terras e feudos, para lutar ao lado do Reino Latino de Jerusalém. O Reino de Jerusalém sentiu o primeiro golpe, quando a cidade de Jerusalém foi tomada por Saladino, em 1187. Em 1291, a cidade de Acre foi tomada e o Reino Latino de Jerusalém foi extinto.

No imaginário europeu e árabe, a palavra “franco” se confundia com o cruzado. Os francos eram conhecidos como um dos povos mais leais à Igreja Romana. Tradicionalmente, eles se tornaram o braço armado da Igreja, na figura de Carlos Magno, quando foi coroado no Natal do ano 800 A.D., como imperador dos romanos, fundando o Sacro Império. E muitos reinos fora da França foram criados por famílias francas, cuja bravura no campo de batalha era largamente conhecida. Eram conhecidos pela coragem indômita e pela ferocidade nos combates. Foram eles, em 732, que esmagaram os mouros, na batalha de Poitiers, na liderança de Carlos Martel.

Outro povo guerreiro da França foi o normando. Eram descendentes dos vikings, e vinham do norte da Europa, mais precisamente da Escandinávia e se situaram ao norte da França. Daí a palavra “normando”, o homem do norte. O primeiro registro dos vikings estabelecidos na França data de 911, quando um rei franco ofereceu um feudo, o ducado de Orleans, a um líder viking, Holf. Através de casamentos mistos com os francos, os normandos, os vikings, a partir do século XI, já haviam se convertido ao cristianismo e absorveram a língua franca. Eram também conhecidos pela bravura e pela brutalidade. Em 1066, Guilherme, Duque da Normandia, e chamado "o Conquistador", invade a Inglaterra e conquista o país, derrotando o exército saxão de Haroldo I, na batalha de Hastings, instituindo a monarquia franco-normanda dos Plantagenet. Quase cem anos depois, o filho mais dileto dessa dinastia marcou história no mundo: Ricardo Coração de Leão.

O Rei Ricardo, apesar de inglês, era a personificação mais perfeita da bravura franca, da luta cruzada. Embora tenha sido rei da Inglaterra, mais se ausentou do que governou o país, ocupado com sangrentas batalhas nos feudos da França. Na verdade, Ricardo Coração de Leão se considerava mais francês do que inglês. A sua língua comum era o francês do sul da França e dizem que mal falava o dialeto que gerou o inglês. Nem mesmo a corte inglesa falava o inglês.

Em 1191, acatando aos pedidos de uma terceira cruzada, foi para a Terra Santa e conteve o avanço do grande sultão Saladino. Ricardo Coração de Leão era tão temido pelos árabes, que no imaginário muçulmano palestino, as pessoas da Palestina islâmica tremiam de pavor ao pensar no nome de “Melech Ric, como ele era chamado em árabe. Dizem algumas crônicas, que até as mães árabes assombravam os meninos, com as histórias do rei vindo do norte. Em uma das batalhas mais espetaculares da Terceira Cruzada, Ricardo aportou numa galera em Jaffa, quase conquistada pelos árabes, e à frente de seu pequeno exército, num acesso de fúria, matou tanta gente, que os soldados de Saladino fugiram apavorados, incapazes de conter o cavaleiro. Saladino, homem de inclinações espirituais elevadas e o protótipo europeu do cavaleiro islâmico por excelência, ficou perplexo e admirado com as investidas do normando. Comenta-se que mandou presentes ao rei inglês, pelos atos de bravura.

Todavia, havia um misto de admiração e desprezo pelos francos. Os habitantes do sul da Itália, da Grécia, os árabes e mesmo os francos da Palestina, adaptados à realidade do oriente, viam os a nova leva de cavaleiros francos com desconfiança e desdém. Os cavaleiros europeus eram desprezados como pessoas rudes, fora da civilidade. Embora fossem ferozes, guerreiros, eram estigmatizados como culturalmente inferiores. Dizem que Ricardo, quando estava entre a Itália e o Chipre, antes de sua chegada a Palestina, em resposta ao desdém dos gregos, mandou criar uma pequena Fortaleza chamada “Mategriffon”, ou seja, “matador de gregos”. Se os gregos e italianos afirmavam que os ingleses e francos eram povos loiros com cabelo de manteiga rançosa, (e burros), os francos, e em particular, os ingleses normandos, chamavam os gregos de “pessoas extraídas de merda árabe”.

E onde ficam as mulheres da França? Com a ausência de tantos homens na França, ficou às mulheres, a responsabilidade de administrar os feudos. A mulher politicamente mais importante do século XII foi Eleanor de Aquitânia: esposa de dois reis, Luis VII, da França e, posteriormente, Henrique II, da Inglaterra, e rainha de dois reinos, Inglaterra e França. Ela era mãe do Ricardo Coração de Leão e com a herança da Aquitânia, tornou-se uma das mulheres mais poderosas da França. Eleanor foi grande patrocinadora das artes e da música, e sua filha, Marie de Champagne, foi difusora do movimento trovadoresco na França. Branca de Castela, bisneta de Eleanor e mãe de São Luis IX da França, era grande musicista e compositora. Outra mulher famosa por suas trovas é a Condessa Beatriz de Dia, que viveu no século XIII. São as “trobairitz”, as mulheres trovadoras.

Os dialetos comuns na França medieval eram dois: o "langue d’oil", que era o chamado o francês arcaico e que deu origem ao francês moderno, comum ao norte da França; e no sul da França, o “langue d’oc”. Langue d´oc, que por sua vez, quer dizer, o francês da Occitânia, ou Aquitânia. Alguns dizem que o provençal está próximo do francês langue d´oc. O mesmo provençal que influenciou as cantigas de amor portuguesas e espanholas. Grande parte das peças femininas fala das tramas do cotidiano das nobres; angústias amorosas do amado ausente, seja na Palestina, seja em outros campos de batalha, mostras de devoção religiosa marianista, ou mesmo o pano de fundo para a trama: a donzela à janela, costurando, lendo um livro.

As mulheres medievais francesas da nobreza não possuíam educação formal, mas tinham elevada cultura. Em parte, essa autonomia se deveu às heranças de suas linhagens e à ausência dos homens, reais proprietários dessas terras, que estavam nos campos de batalha, e deixaram seus bens a suas esposas. E por outro lado, as regras de etiqueta exigidas pelo status nobre, davam um suporte intelectual às damas. Elas tinham domínio de boas maneiras, música, falcoaria, equitação, xadrez, canto, dança e habilidades para ler e escrever. Em suma, incorporavam o papel restrito aos homens, exercendo altas habilidades culturais. E uma delas, era a música.

No entanto, a partir do século XIV, a autonomia das mulheres nobres começa a definhar. As cruzadas se transformaram num engodo militar, que nenhum rei ou cavaleiro se atreveria a carregar. Preferiam ficar em casa. Os nobres franceses reivindicam a lei sálica, para excluir as mulheres dos direitos de administração de feudos e reinos. Cabe lembrar que a lei sálica, excluindo as mulheres, excluía dinastias importantes ao reino da França e isso acabou causando também guerras. E a partir da Renascença, a mulher perde sua proeminência política, restrita, mais uma vez, aos homens.



As canções que são publicadas aqui fazem parte do repertório das mulheres trovadoras da França. A primeira música, “A chantar”, de Beatriz de Dia, tem um componente erótico, que é a exaltação dos prazeres do amor carnal. “Amous”, de Branca de Castela, é uma canção de devoção à Virgem Maria. Maroie de Dregnau de Lille é uma trovadora de origem desconhecida e provavelmente viveu no século XII. Sua canção é uma trova de amor. As duas peças “Estampies”, pertencem ao repertório de dança: estampie é um estilo de dança medieval muito comum na França, e encontrado em outras regiões da Europa. Seu tipo é, provavelmente, uma dança de sapateado. A sua originalidade consiste em ser um tipo de música instrumental da Idade Média, já que a maioria das peças medievais eram cantadas.

Muitas das obras aqui foram encontradas no Manuscrit Du Roy, no século XIII. A única que não se inclui na época é a Estampie do século XIV, que é uma música a parte.

(Trovadoras da França – Século XII – XIII)



1. A chantar m´er de so q´ieu no volria.(Beatriz de Dia)

2. Amous, u trop tart me sui pris.(Branca de Castela)

3. Mout m´abelist quant je voi revenir.(Maroie de Lille)

4. La Quinte Estampie Royal.(Anônimo).

5. Estampie. (século XIV).

1 comment:

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