Friday, January 19, 2007

VOX IBÉRICA IV: Sefarad e a música da nova diáspora!


“E ordenamos previamente neste édito que todos os judeus e judias de qualquer idade que residem em nossos domínios e territórios, que saiam com os seus filhos e filhas, seus servos e parentes, grandes ou pequenos, de qualquer idade, até o fim de julho deste ano, e que não ousem retornar a nossas terras, nem mesmo dar um passo nelas ou cruza-las de qualquer outra maneira. Qualquer judeu que não cumprir este édito e for achado em nosso reino ou domínios, ou que retornar ao reino de qualquer modo, será punido com a morte e com a confiscação de todos os seus pertences.
Ainda ordenamos previamente que nenhuma pessoa em nosso reino, de qualquer estado, ou nobreza, esconda ou mantenha ou defenda qualquer judeu ou judia, seja pública ou secretamente, do fim de julho em diante, em sua casa ou em qualquer lugar em nosso reino, sob pena de perda de seus pertences, vassalos, fortalezas e privilégios hereditários.”


Este trecho foi extraído do édito de expulsão dos judeus da Espanha, assinado pelos reis Fernando V de Aragão e Isabel de Castela, selando definitivamente séculos de presença judaica na Espanha. A expulsão dos judeus em território espanhol foi uma das maiores tragédias da história daquele país. Milhares deles abandonaram suas casas, vilas e cidades, e o êxodo foi um espetáculo tão assustador, que até os cronistas cristãos ficam chocados com a atitude dos reis católicos. Dizem alguns números, que cerca de duzentos mil judeus, ou 5% da população espanhola partiram da Espanha. Cidades inteiras ficaram desertas e o reino espanhol se viu privado de uma das melhores intelectualidades do país. Se os judeus experimentaram várias diásporas em sua historia, a partida de “Sefarad” (o termo assim usado pelos judeus, ao se referir à Espanha) é mais uma coleção de um povo desterrado e errante. Uma parte foi embora para Portugal, e o resto, para o norte da África e para as terras do Império Turco.

Os judeus eram um dos povos mais antigos da Península Ibérica. Habitantes são conhecidos desde o fim do Império Romano e com a invasão árabe na Espanha, em 711, muitos outros, vindos das terras do Norte da África, acompanharam os invasores, radicando-se na região. O crescimento das cidades cristãs e islâmicas prosperou junto com a história judaica no mundo árabe-hispânico. Na verdade, os judeus fizeram parte da Época de Ouro medieval espanhola. Encontram-se judeus nas cortes islâmicas dos Omíadas, tanto quanto na corte de sábios de Afonso X, El Sábio. Como engenhosos comerciantes e profissionais liberais, os judeus tinham invejável proeminência em assuntos de medicina, advocacia, filosofia, matemática, astronomia e literatura. São encontrados judeus nas administrações de reinos cristãos e islâmicos. São contabilistas, cobradores de impostos, juristas.

E são também literatos e filósofos. Samuel Ibn Nagrela, Salomão ibn Girol, Judá Halevi são poetas profanos. E a partir da Idade Média é que se conhecem os grandes tratados filosóficos do judaísmo: Maimônides, o grande pensador judeu, escreveu suas obras dentro do universo espanhol árabe. O “Guia dos Perplexos” é uma obra que associa do pensamento aristotélico à religião judaica. Nahmanides foi um rabino polemista, famoso por viver às turras com os cristãos, em debates teológicos sobre a validade do cristianismo e do judaísmo. Como um crítico do cristianismo, não era muito bem visto pelos cristãos, apesar de respeitado. O Zohar, obra mística ligada à tradição cabalista, foi escrita no século XIII, na Espanha, e divulgada por várias comunidades judaicas do mundo.

Os judeus estão intimamente ligados às navegações marítimas portuguesas e espanholas. Seus estudos sobre as estrelas e os astros são conhecidos desde o século XII. Técnicas de uso do astrolábio e de tecnologia náutica trazidas pelos árabes tiveram uma sólida ajuda dos judeus. Quando começaram a sentir as perseguições religiosas dos reinos espanhóis, muitos deles foram mostrar seus serviços ao reino português. O príncipe infante português Dom Henrique, o Navegador, criou a Escola de Sagres, com forte participação de matemáticos e astrônomos judeus. Abraham Zacuto escreveu uma obra chamada “Almanaque Perpétuo de todos os Movimentos Celestes”, cujas aplicações marítimas eram segredos do Estado português. Jehuda Crescas era cartógrafo da Escola de Sagres e Mestre João, astrônomo da viagem de Pedro Álvares Cabral, descobriu o Cruzeiro do Sul, em 1500. Afirma-se que o próprio Cristóvão Colombo fosse judeu, apesar de que essa tese nunca foi historicamente provada.

Entre as religiões e culturas da Península Ibérica, os judeus estavam no fogo cruzado entre cristãos e islâmicos. Dentro das intrigas políticas, religiosas, guerreiras e palacianas dos grandes povos da Espanha, a comunidade judaica escolhia aquilo que melhor convinha à sua autonomia política e religiosa. Isso gerava desconfiança e ressentimento contra os judeus, vistos como um povo de caráter dúbio e não muito confiável. No entanto, os judeus estavam profundamente ligados aos cristãos pelo sangue. Um exemplo clássico disso é a profunda miscigenação entre os judeus e a nobreza cristã espanhola. No século XV, a nobreza espanhola era conhecida por seus casamentos mistos com judeus; e, no auge do radicalismo anti-semita do recém criado reino espanhol, a partir de 1492, a monarquia criou as chamadas “leyes de limpieza de sangre”. Tais leis visavam expurgar a mistura racial entre judeus e cristãos, ou mesmo condenar ao ostracismo qualquer família de linhagem nobre com sangue judeu.

O estigma antijudaico que se criou na Espanha foi tão pesado, que a nobreza espanhola era vista com desconfiança. É conhecida algumas declarações de alguns bispos e nobres, sobre a exaltação do homem espanhol plebeu, “límpio de sangre”, sem mistura judaica, cristão velho, em contrapartida a muitas famílias nobres, “súcias” de sangue judaico.

Foi a partir do século XV que nasce o termo “marrano”, ou seja, porco, como sinonímia de judeus no reino espanhol. A palavra “marrano” se tornou tão estigmatizadora, que ela mesmo, historicamente, se confundiu com o próprio significado de judeu. Nos escritos do século XVI, “marrano” se confundia tanto como “porco”, quanto judeu. E mesmo no século XVII, quando muitos judeus portugueses foram morar na Holanda, refugiados da inquisição portuguesa, a palavra “português”, fora dos domínios de Portugal, acabou por se confundir com o baixo status judaizante.


Aliás, havia uma crença disseminada na Espanha, de ligação do protestantismo com o judaísmo. Felipe II da Espanha e muitos inquisidores viam na declaração de Lutero, uma apostasia judaica, assim como muitos reformadores religiosos eram suspeitos, aos olhos dos espanhóis, de judaísmo no sangue. E quando o Reino Espanhol adotou sua vanguarda de campeã do catolicismo europeu e da Contra-Reforma, qualquer estrangeiro de idéias um pouco diferentes das do reino poderia ser visto com um “judaizante”. Os espanhóis conseguiam ser mais rigorosos do que os próprios italianos de Roma.

A centralização monárquica e o radicalismo de unidade religiosa do reino acabaram por comprometer a autonomia religiosa e política dos judeus da Península. A idéia central do catolicismo espanhol era purificar a religião de elementos estranhos ao cristianismo, ou seja, as velhas práticas islâmicas e judaicas. Como a religião católica se atrelava intrinsecamente aos propósitos do reino, logo, a diversidade religiosa não seria tolerada. Os judeus eram vistos como corruptores da fé católica, que induziam os judeus conversos a voltarem à sua antiga religião. Inclusive, muitos padres e bispos eram suspeitos de tendência “judaizante”. A inquisição espanhola começa a atuar em 1481, com o famoso Tomás de Torquemada, crudelíssimo inquisidor geral, e ele mesmo, um descendente de judeus. Cerca de 13 mil conversos foram julgados pela inquisição espanhola, entre 1480 e 1492. Na verdade, os ressentimentos não visíveis entre as fés da Península acabaram por explodir num vendaval de intolerância do reino cristão contra a dissidência religiosa. As tendências mais radicais da religiosidade católica espanhola dominaram o cenário político. A ânsia de identidade acabou por se tornar uma ânsia de expurgo. E isto deu cabo à presença judaica na Espanha.

A política espanhola contra os judeus foi sentida em Portugal. O rei Dom Manuel ansiava por se casar com a filha dos Reis Católicos Isabel e Fernando. Todavia, os reis espanhóis exigiam, dentro de suas cláusuras, a purificação do reino, ou seja, a expulsão dos judeus de Portugal. Porém, Dom Manuel havia dado asilo a muitos judeus espanhóis do edito de expulsão de 1492 e uma comunidade judaica prestava grandes serviços ao reino. Em 1497, Dom Manuel tomou uma medida drástica: converteu todos os judeus de Portugal à força e resolveu o problema diplomático. Na prática, contudo, ele tolerou o judaísmo secreto e deixou os judeus praticarem sua religião, contanto que a manifestação não fosse pública. Mas a tragédia se abateria sobre os judeus, no início do século XVI. Em 1506, um surto de peste e secas em Lisboa acaba por levar o povo a uma histeria coletiva contra eles; muitas vilas e “judiarias” são saqueadas e milhares de judeus são mortos. Dom Manuel simplesmente perdeu o controle da cidade e somente dias depois conseguiu mandar tropas para debelar a rebelião. Em 1507, o rei permite a saída dos judeus de Portugal. É conhecida, nesta época, a figura do cristão-novo, alguém de mistura judaica, ainda que muito distante, que pratica a religião católica, mas é sempre eterno suspeito de praticar o judaísmo secreto. Eles já existiam na Espanha e acabaram por se alastrar ao reino português. E o reino lusitano, adotando o método espanhol de centralização política e religiosa, instaura a inquisição, em 1536. Os judeus partem em uma nova diáspora, para a Holanda. Assim, Sefarad deixa de existir.

A tradição judaica da diáspora ibérica consagrou belas canções, dentro de seu imaginário artístico e folclórico. Os judeus medievais, em geral, falavam o árabe na Península, embora também compartilhassem com um dialeto próximo do castelhano, chamado “ladino”. O termo “ladino” vem do verbo “enladinar”, ou seja, tornar “latino”, “traduzir para o latim”, já que os judeus, com a expansão cristã, aos poucos, começaram a adotar o castelhano como sua língua. O castelhano judeu é uma corruptela do castelhano original, já que há muitas expressões mescladas de arabismos de judaísmos notórios. No entanto, o ladino preserva as estruturas gramaticais do castelhano medieval.
Quando os judeus partiram da Espanha, preservaram o culto da língua ancestral ladina, seja nas suas músicas, seja nas suas comunidades. Era relativamente comum nas comunidades judaicas, descendentes dos judeus da Espanha, usarem o castelhano ladino como língua comum. Era também comum que os judeus da Turquia, da Grécia, do Marrocos, e mesmo nas comunidades da Europa do Leste, sendo de origem sefardita, ainda guardassem resquícios espanhóis de cultura. Daí essas canções terem sido guardadas e passadas por uma tradição oral, retratando o dia a dia das “juderías”, das “alfamas”, os bairros judaicos de uma realidade extinta.

As canções judaicas falam de casamento, de fé e de amor. Há nas modinhas amorosas, um certo ar aristocrático, trovadoresco. De fato, o judaísmo espanhol era aristocrático, intelectualizado, elitista, com um leve toque árabe nas músicas e nas melodias. E o legado que deixaram na Espanha dá uma leve amostra da elevação cultural do povo judeu no mundo medieval.
(Música judaica medieval - século XV)

No comments: