Wednesday, January 17, 2007

VOX IBERICA III: Al Andaluz e o mundo árabe entre duas Penínsulas.


Na Península Arábica, um povo do deserto se unifica sob a égide de uma nova religião no século VII. Os árabes, sob a pregação de Mohamad (Maomé), assimilam a religião islâmica. Com o lema “Alá é Deus e Maomé seu único profeta” e o livro sagrado Alcorão, os árabes constituíram toda sua vida política, social, econômica e religiosa no pensamento muçulmano. De fato, Islã, significa “submissão a Deus”. Enquanto preceito de conduta social, a sociedade árabe, antes dividida pelo politeísmo e pelas brigas entre clãs, agora, com o monoteísmo, poderia sonhar com um projeto imperial de expansão e de unidade política.

A busca e ânsia de riquezas, a fé no proselitismo religioso e a conversão dos povos, o excedente populacional e a ambição de domínios territoriais fizeram o povo árabe se expandir mundo afora através da Jihad, guerra santa. Envolvendo bravura e intenso fanatismo religioso, os árabes dominaram o Império Persa e conquistaram todo o Oriente Médio. Expandiram-se pelo norte da África invadindo terras do império de Bizâncio, conquistando os seus domínios em todo o Mar Mediterrâneo e causando pânico à Europa, aterrorizada pelos saques e pirataria às suas cidades litorâneas. As cimitarras não descansaram e os árabes invadem o continente europeu, tomando quase toda a Península Ibérica e expulsando os visigodos ao norte da região. Os sarracenos só foram contidos por Carlos Martel (o Martelo), na batalha de Poitiers, em 732, já na França. Sobrou o norte cristão da “Hispania”, resquício dos reinos cristãos, como foco de resistência ao invasor islamita. De uma Península, a da Arábia, os islamicos chegaram a outra Península, a Ibérica. Em menos de dois séculos, os árabes conquistaram um império que ia dos confins da Espanha até o Vale do Rio Indo, na Índia.

Uma característica que se consagrou na cultura islâmica medieval foi o cosmopolitismo, na absorção cultural de outros povos. A contribuição muçulmana está ligada a diversas áreas do conhecimento humano: alquimia, matemática, física, filosofia, literatura, arquitetura, medicina, astronomia e outras artes e ciências, além da música. Instrumentos náuticos largamente usados pelos europeus do século XVI, como o astrolábio, a balestrilha e a bússola, foram introduzidas pelos muçulmanos na Idade Média. A divulgação do zero, como da numeração indo-arábica (por serem originários da Índia), foram legados trazidos pelo Islão e que revolucionaram a matemática ocidental. O matemático e comerciante italiano Leonardo de Pisa, em seus contatos com os muçulmanos do Norte de África, no século XII, introduziu o sistema numérico indiano na Europa, substituindo a numeração romana. Este patrimônio cultural do império islâmico foi repassado aos povos dominados de Al Andaluz, denominação árabe da Península Ibérica. Na prática, uma boa parte do mundo europeu foi beneficiado pela cultura trazida dos árabes. Até o século XV, os legados culturais das ciências naturais, das artes e mesmo da filosofia (já que os árabes eram grandes conhecedores de textos gregos, junto com os bizantinos), foram absorvidos com sucesso pelos cristãos, influenciando profundamente a cultura européia.

A palavra “Al Andaluz” apareceu pela primeira vez, em 716, quando os invasores islâmicos cunharam uma moeda bilíngüe, identificando, além dessa expressão, o antigo nome da região, Hispania. Há muitas controvérsias quanto a origem do termo “Al Andaluz”:
a mais próxima, diz respeito a “Jazirat-Al Andaluz”, ou a “ilha do Atlântico”, ou “Atlântida”, ou a lenda da Ilha perdida, herdada da mitologia grega.

Em 711, a Espanha é anexada ao Califado Omíada de Damasco, na Síria, e se torna parte do Império Islâmico. Em 756, uma guerra política interna na Síria, encabeçada pela família Abássida, massacra a família Omíada da Síria, e o príncipe sobrevivente dessa dinastia, Abd Ar-Rahman, foge para a Espanha e declara um Emirado independente, o de Córdoba. Séculos depois, os árabes, politicamente desorganizados, acabaram sofrendo a resistência dos reinos cristãos.

Se por um lado, a história espanhola medieval é conturbada politicamente, em guerras e lutas dinásticas entre cristãos e islâmicos, foi nesta época que conhecemos a coexistência cultural, por vezes pacífica, entre cristãos, judeus e islâmicos. A cultura árabe foi tão influente na região da Espanha, que praticamente, salvo os reinos cristãos, a grande maioria da população da Península falava árabe. Se os reinos cristãos ainda preservavam os dialetos vernáculos do latim, uma boa parte de sua população não era refratária ao idioma árabe. Na verdade, o grosso do mundo árabe acabou por se miscigenar com os reinos cristãos. Várias famílias nobres cristãs tinham relações sanguíneas com muitas famílias árabes e muitas de suas brigas tinham caráter dinástico, embora a religião também os diferenciasse. Havia entre árabes e cristãos, relações de vassalagem e suserania, e era comum os reinos árabes se aliarem a reinos cristãos, lutando contra reinos cristãos, e vice-versa. A história de El Cid, grande cavaleiro espanhol do século XI, retrata a junção entre as culturas islâmica, cristã e judaica e suas relações políticas, a despeito das diferenças culturais. Quando Afonso VI, rei de Castela, retomou Toledo, ele se declarou “rei de duas religiões”. Mesmo no túmulo do Rei Fernando III, de Castela, conquistador de Córdoba, o epitáfio foi escrito em quatro línguas diferentes: árabe, hebreu, latim e castelhano. Na realidade, as divergências políticas e religiosas entre o mundo espanhol medieval tinham um caráter especial:
acabavam sendo briga de família. Judeus, católicos e islâmicos eram uma grande família dividida. Apesar do intercâmbio cultural entre as religiões e povos da Península, as tensões políticas e religiosas eram visíves; e os ressentimentos, latentes, explodiam em guerras e violência.

Ademais, era conhecido o relativo respeito, entre os principados árabes, com o costume das populações subjugadas. Em parte, esse caráter de tolerância era peculiar aos príncipes árabes da Espanha, homens de grande erudição cultural e pragmatismo político. Porém, tal sentido de tolerância não se restringiu a eles, existindo também entre principes cristãos espanhóis, que comungavam dessa política. No geral, os árabes eram conhecidos pela truculência e pela escravidão de populações inteiras. A fúria, por vezes, não poupava nem os judeus. E um histórico brutal de violência e opressão marcou trezentos anos de saques e pilhagens islâmicas nas cidades do Mediterrâneo europeu, até o ano de 1096, quando o Papa Urbano II, no Concílio de Clermont, conclamou a Primeira Cruzada. As cruzadas foram uma resposta brutal e violenta a esse tipo de atrocidades. . .
A Península Ibérica se tornou um conjunto étnico de judeus, cristãos de diversas origens, bérberes, persas, sírios, bizantinos, negros africanos islamizados e toda sorte de povos, muitos com expressões culturais próprias e dialetos diferenciados. Os judeus, conhecidos por “sefaradins”, rezavam em hebreu e falavam o dialeto “ladino” entre eles, uma mistura de castelhano, com expressões árabes e judaicas mescladas. Uma boa parte dos cristãos sob o domínio islâmico, chamado “moçárabes”, poderiam perfeitamente ser católicos romanos, enquanto falavam abertamente o árabe nos cultos, relegando o latim em segundo plano. Tamanha praticidade levou à tradução de uma bíblia cristã em árabe. Isto porque eles poderiam falar castelhano, galego, aragonês e catalão (ou então algo aproximado disso, já que as línguas vernáculas do latim vulgar careciam de uma estrutura gramatical clara). E se estes cristãos fossem bizantinos, rezavam e falavam em grego. A língua árabe transformara-se numa espécie de idioma universal das etnias englobadas dentro do império. Em alguns principados islâmicos, a liberdade religiosa era tolerada, com a condição de se pagar impostos ao governo. Os judeus e os moçárabes poderiam ser julgados conforme suas próprias jurisdições, tinham relativa liberdade de ir e vir e poderiam ter suas próprias lideranças comunitárias. Havia médicos judeus, estudiosos bizantinos, comerciantes sírios e cristãos, além de outros profissionais de várias localidades do Islã, que enriqueciam e dinamizavam Al Andaluz. Granada, Córdoba e Toledo eram centros pomposos na paisagem hispânica, com sua arquitetura arabesca, com suas ruas opulentas e ricas. O palácio de Alhambra (no árabe, a Vermelha), monumento assombroso de Granada, construído entre os séculos XIII e XIV, é um retrato perfeito da mais bela arquitetura árabe na Espanha. E a grandiosa mesquita de Córdoba, transformada em catedral pelos reis cristãos conquistadores, foi o resquício do antigo esplendor mourisco medieval. Córdoba, no século IX, chegou a ser a cidade mais povoada do mundo medieval.

Os cristãos do norte não estavam totalmente rendidos ao jugo muçulmano. A partir do século IX, a Espanha foi catalisadora de vários cavaleiros de toda a Europa, ansiosos por aventuras e terras, e profundamente devotos pela causa da Cristandade. Estes se reuniam em expedições militares cruzadistas a serviço dos reinos cristãos, envolvendo-se em sangrentas pelejas contra os mouros. Sob a égide de alguns cavaleiros, surgiram grandes dinastias, e grandes reinos renasceram sobre suas famílias e legados. No século XI, o reino de Leão e Castela expande-se ao norte do Rio Douro, expulsando os mouros da região. Destacaram-se nesta luta, dois irmãos, cavaleiros do Ducado da Borgonha, de nome Henrique e Raimundo, que por serviços prestados, casaram-se com as filhas do Rei de Leão e Castela, Dom Afonso VI. De Raimundo e seus descendentes, fora herdado o Reino de Leão e Castela, e, futuramente, nasceu a Espanha moderna. E de Henrique, o Condado Portucalense, (denominação originária de uma antiga cidade romana, “Portu Cale”, “Porto do Cal”), com obrigações de prestar vassalagem ao reino castelhano-leonês. De Henrique e seu filho, Afonso Henriques, posteriormente, nasceu o Reino de Portugal.

A partir de lutas seculares, os reinos cristãos se expandem e os principados árabes entram em decadência. Toledo, uma das mais importantes cidades islâmicas da Espanha, foi tomada por Afonso VI, de Castela, em 1085. Em Las Navas de Tolosa, em 1212, os árabes foram esmagados por uma coalização dos reis de Castela, Portugal, Navarra e Aragão. Em 1236, Dom Fernando III, o santo, Rei de Castela, conquistou Córdoba dos árabes, golpeando mais ainda o império islâmico, ao perder uma de suas mais preciosas cidades. No final do século XV, em 1491, os reis Isabel de Castela e Fernando de Aragão, cercaram o último principado islâmico da Espanha, Granada. O Rei de Granada, Abu Abd Allah, acabou por capitular, entregando a cidade para os cristãos, e em 1492, Granada foi anexada ao reino de Castela. Dizia uma lenda, que o sultão chorou quando entregou a cidade, enquanto sua mãe o repreendia, afirmando que ele chorava como uma mulher, ao invés de defender seu reino.

A conquista de Granada selou o fim do domínio islâmico na Península. Selou também séculos de entendimento entre o mundo islâmico, cristão e judaico. Em 1492, no intento de unificar a religião do reino, os Reis de Castela decretaram, no palácio de Alhambra, o edito de expulsão dos judeus. E em 1502, os mouros foram obrigados à conversão ao cristianismo ou a expulsão. Mais de cem anos depois, em 1609, no reinado de Felipe III de Habsburgo, os mouros que ainda residiam na Espanha foram definitivamente expulsos.

Uma questão a ser observada aqui, depois dessa breve esplanação histórica, é a música árabe na Península; uma boa parte dos instrumentos musicais europeus vem do mundo árabe. A guitarra espanhola é uma adaptação do alaúde, que por sua vez, vem do "ud" árabe. O violino e os demais instrumentos de arco, como as violas, as rabecas, provêm do rabab, tocado na Península e em muitas regiões do mundo islâmico. As castanholas, os saltérios, são instrumentos desenvolvidos e adaptados do oriente. Os cantos musicais dos trovadores e suas construções poéticas, algumas são adaptações poéticas da literatura islâmica. As influências são sentidas nos idiomas de Portugal e Espanha, cheia de palavras e expressões da língua árabe. E a música espanhola é praticamente toda inspirada no canto árabe. As músicas aqui expostas neste blog vão conferir a sonoridade da música trazida pelo islão, e sua ligação com a música ocidental.
(Música árabe de Península Ibérica - Século XIII)

1. Ajedrez.

2.Las noches de encuentro.

3.Consoladme niñas al Alba.

4. Bashrafa samai sika

5.Despedime

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